sábado, 16 de agosto de 2008

"A VIDA SEXUAL DE IMMANUEL KANT"


Meu analista — é, cara, eu tive um analista: pode mangar à vontade — me falou desse livro. Ultimamente me sinto roubado sempre que ouço dizer que alguém teve uma boa idéia. O Machado de Assis, velhinho escroto, tinha razão: na cabeça da gente os sacanas são os outros.
Mautus Fidélis andava comigo de braço dado no meio das maiores multidões como se estivéssemos em Istambul ou em Alexandria. Como acontece com determinadas composições da música erudita, a voz dele diminuía e aumentava de volume quando menos se esperava. Ele me contava as suas coisas espantosas (mas depois de algum tempo caras como Mautus, mesmo sem perder o seu magnetismo maligno, se tornam espantosamente maçantes) não sei se mais difíceis de acreditar quando eram mentira ou quando eram verdade. Da última vez ele disse que ajudara a cavar o túnel dos caras que roubaram o Banco Central e que fumava lá dentro usando batom.
— Ainda acham que tinh’u’a cuiã no mei dos cara, ó?
Mautus gostava de falar como malandro e de tirar onda de malandro, como todo bom otário enrustido. Mas com a fama dele não duvido de que ele fosse mas era a mulher mesmo, no meio dos caras. Não é que o filho da puta andava ajeitando o meu cabelo e a minha gola e falando alto quando uma mulher chamava a atenção dele, mas ele não chamava a atenção dela:
— Eu gost’é de u’a mulher vagabunda!
Não existe filho da puta discreto.
Praça. Os velhos impotentes negociavam afrodisíacos diante da banca de revistas e vídeos pornográficos de segunda mão (é sério: a banca não tinha nada além disso e atraía os velhos como um pedaço de carne crua atrairia moscas e cães pelados) e riam às nossas costas depois que passávamos lembrando que o Luiz Gonzaga dizia que no Ceará não tem disso não, tem disso não, tem disso não. Carros de som como minaretes móveis — 17:00h — davam os últimos anúncios de cortes e tecidos, os andinos tocavam Emoções, adolescentes salivantes com o rosto espinhoso como um cacto vestindo fardas do Liceu com furos de guerra e usando broches de fralda nas orelhas paravam diante da projeção pública e ilícita de um filme pornográfico (a televisão, a fita, o aparelho cassete, os cadarços do sapato, os conselhos e as informações do camelô estavam à venda) e as mentiras do Mautus ficavam cada vez piores.
— O que você fez com o dinheiro, então?
— Doei 90% da minha parte.
Deve ter doado 20000l de uísque às filiais do AA, mas é claro que ele não estava no meio da coisa. Suas guimbas marcadas de batom com a impressão tensa dos seus lábios foram jogadas em outras sarjetas.
Diante do José de Alencar, entronado e sempre triste — o nosso sr. Vitor Hugo — no seu bronze, sob a constante ameaça dos pombos, Mautus riu e não me explicou por que. Dizem que os doidos é que riem sem motivo; minha teoria é que vivem pensando coisas engraçadas. O que me preocupa é que isso em acontece o tempo todo. Mas, depois de rir sem razão, o cara ainda começava a gritar, do nada, coisas sem sentido, só por provocação gratuita não sei contra quem.
— Por que não ouvem o homem nu? Por que não deixam o homem nu falar?
Aquele preceito do J. J. — Nunca conheci um chato — parecia legal, mas não era tão fácil de seguir, ao menos não de cara limpa.
Conheci mais de perto o Mautus quando investiguei por conta próprio — e sem nenhum resultado aproveitável — a morte de um jovem chamado Daniel, no final do século XX. Daniel se unira a um bando de anarquistas que planejava uma coisa grande. Ele morreu com um tiro na cara e 50kg de cocaína debaixo da cama. Uma história complicada que a polícia não queria explicar e que eu, por minha vez, tornei ainda mais confusa (graças à ajuda de colaboradores como Mautus). Mas meu principal objetivo na época da investigação, entre 2003 e 2004, era ficar longe de casa, correr todos os perigos sem pensar em nada, consumir sem perguntar o que era qualquer coisa que me oferecessem e agir como se não soubesse o que estava fazendo. Porque, entra 2003 e 2004, eu queria morrer: foi um dos períodos mais divertidos da minha vida… até que o dínamo emperrou.
Essa maldita década está acabando com todos nós — O último remanescente do século XIX — e eu fiquei foi puto mesmo quando ouvi isso do Urano… porque tinha um pouco de verdade: ainda sou um sujeito pesado e as pessoas acabam se afastando. Principalmente as mulheres: não vou mentir.
Eu via o que a década estava fazendo a Mautus e imaginava ele daqui a vinte ou dez anos: como uma bicha velha e descarada, oferecendo suas drogas sintéticas de quintal a qualquer cara que passe pela sua esquina, menos por dinheiro que pelo prazer de fazer negócio. Como uma bicha velha. Eu conhecia o tipo e seus papos furados. Quem nunca foi alvo da conversa mole desses caras em algum momento da juventude? Me lembro de certa vez: eu estava sentado num banco à espera não sei exatamente de que mas muito provavelmente de nada quando um tipo desses, alto, pesado, desengonçado, de bigode sírio-libanês e beiços moles de camelo sedento, me abordou. O cara enfrentava às cegas angústias, frustrações, riscos exagerados que não dá pra calcular direito, mas quando dava certo tudo parecia valer a pena… ou era aí que começavam os problemas. Outra pessoa: de costas pra ela você sente alfinetadas magnéticas na espinha.
— Moreno 25?
— Com’é que é?
— Moreno 25. É você, não é?
— Nunc’ouvi falar, não.
— Marquei com ele pelo telefone e ele disse que ia me esperar nesse banco aqui. — A essa altura ele já estava sentado ao meu lado: tinha um modo de se insinuar semelhante ao do Mautus. — Ele também disse que ia vir vestido como você. Tem certeza de que ele não é você?
Um filósofo perspicaz teria me deixado em dúvida, mas não era possível me confundir com um Moreno 25. O velho devia ter feito um desses contatos pela internet (se não fosse um tremendo cara de pau jogando verde) e, se a história fosse mesmo verdadeira, dava pra entender o que tinha atraído ele. 25 devia se referir a idade, mas eu não resistia a pensar em termos de número de série, como no caso de carros e programas de computador. Moreno 25, desde que existisse e não fosse um mentiroso (foi por isso que eu fui confundido?), devia ser um surfista bronzeado, musculoso e presunçoso que cobrava de R$ 50,00 a cem a hora ou envenena as bebidas. Não dava pra confundir comigo: um tipo que entra em qualquer confusão por causa de uma nota amassada de cinco.
(…)
Seria triste ver Mautus cumprir aquele destino, embora ele merecesse coisa pior e talvez até pedisse por isso.
— O que acha de Kant?
— O mesmo que acho de Descartes.
Preceito 171: sempre que quiserem sacanear você, dê o troco na mesma moeda. Kant era um cara triste que escrevia livros que ensinavam a correção da sua tristeza; está morto há mais de duzentos anos e o pessoal continua rindo feito hiena e se matando por besteira. Um epicurista, ele, no sentido exato da palavra: não ejaculava e andava com medo de suar, segundo os biógrafos, porque tinha medo de deixar vestígios e se desperdiçar além do necessário. Também pode ser que ele fizesse tudo isso e recolhesse com uma esponja ou com a palma da mão pra beber tudo de volta.
— O que você quer com Kant e a minha opinião sobre ele?
Se sentir o máximo comendo um pastel de carne com caldo de cana no meio de gente apressada, caras certos de que andar pra frente levará eles sempre adiante e de que depois de 60 segundos sempre se terá passado um minuto. Mas aí parou perto da gente um táxi à espera: ninguém é mais sacana do que um taxista sacana, a não ser um taxista sacana bêbado numa terça de carnaval buzinando pra qualquer coisa viva que tenha um buraco porque ele quer transar e seria capaz de dar em troca disso uma longa viagem rumo a lugar nenhum na bandeira 2. O cara estacionou a porra do táxi ouvindo um disco do padre Zezinho. A velha canção que todo mundo conhece falava de uma nova humanidade cristã, maridos e esposas fiéis no casamento, gente que se casa virgem e se considera de porre porque bebeu meio copo de cerveja e começou a rir e por isso para, pessoas que se perdoam antes de dormir e filhos sempre de bem com os pais que dormem antes das dez, acordam antes das seis e nunca assistem filmes impróprios e sobre tudo isso o Z pedia as bênçãos de Deus pra que se tornasse assim e assim permanecesse. Por que é que na minha cabeça — e não na dos outros — eu pensava que Kant, um sujeito que a gente não consegue ler sem começar a suar, como se lutasse contra a prisão de ventre, se dobrando em dois sobre a privada, e quando chega na página três já se passou meia hora, um cara que não batia punheta com medo de se desperdiçar tinha tudo a ver com isso e com o sorriso de verme dentado, uma constelação de cacos amarelados, cheios de pontas imprecisas, no rosto mole e enrugado do Mautus?
— Eu sempre tive uma dúvida — ele disse. — Por que é que tantas mulheres saem de casa sem sutiã nos domingos?
Justamente no dia em que todas as partes do corpo imploram por misericórdia ou por uma morte rápida, mas aquele não era um domingo: sentados ao pé da grade lateral do teatro mulheres cobertas de fuligem amamentavam seus filhos cobertos de fuligem com as moscas disputando o mole dos seus olhos baços e um pote vazio e descascado de margarida mal forrado de centavos velhos e os tatuadores mostravam os seus catálogos. Aroma de ervas estranhas por todos os lados. Mautus, Z, Kant. O Centro sempre me deixa super-excitado. (…) Mesmo quando parece que não tem ninguém, como nas noites em que a gente vê os preás pulando de um lado pro outro, eu sinto uma constelação de olhos de gato raivoso se abrindo em todos os cantos escuros. A hora boa — descobriu Urano — em que as moças dali cobram pouco pra mostrar os seios. Os travestis (praça das Crianças) já andam com os seios nus porque a propaganda é a alma do negócio. Nunca me esqueço de um que tinha o cabelo cortado como o meu, bagunçado como o meu (um ninho de rato, diz a minha mãe) e, como eu, meio calvo e com a barba por fazer, espetando: tinha seios de adolescente, mas seus olhar de olheiras fundas fuzilava metalicamente e sua cicatriz de navalha aberta do canto da boca até a orelha esquerda fazia qualquer um recuar como diante de uma maldição de encruzilhada com velas acesas e cabeça de bode.
Eu sentia esse mundo oculto sob a casca como um sonho salvador. Em algum lugar a embriaguez e a náusea deviam ser possíveis, mas tudo que eu tinha eram as dúvidas idiotas do Mautus, Kant e as canções de Z. Preferi até a última vez em que, numa casa desconhecida em que nunca mais pisei, fui parar com a cara numa privada — o pior lugar pra ver as cores explodindo e sentir os ponteiros do relógio girando em órbita elíptica — sob a assistência prestimosa do Ibrahim. Eu queria era correr, deixar o Mautus fingindo que se perguntava o que tinha feito quando na verdade estaria mas era muito feliz por ter deixado alguém maluco, mas o cara exercia sobre mim um magnetismo malévolo de que também se orgulhava, o mesmo tipo de magnetismo que me arrastava, madrugada adentro, feito um zumbi, pros piores endereços e não lugares, em busca de qualquer refugo mórbido que me custaria horas de arrependimento.
— Olha. Precisa me responder não. — Ainda se referia aos sutiãs que os domingos engavetam ou estendem no varal junto às calcinhas floridas. — Mas, como escritor, era sua obrigação saber disso.
— Eu não lhe respondo porque não sei mesmo, sacou?
— Fica calmo.
— Mais calmo que eu impossível.
O que mais impacienta um cara nervoso é ninguém acreditar que ele está calmo quando ele diz que está calmo.
— Olha. Eu tenho o que você precisa…
— Me procure cinco anos atrás e talvez eu aceite.
Eu estava com medo de tudo ao meu redor. Despertara, lúcido demais, no meio da viagem, dando de cara com todos aqueles que eu gostaria evitar, e me dera conta até dos perigos que as pessoas não viam. Porque estava dentro de mim e dentro delas. Mautus, o mais orgulhosamente cínico de todos, capaz de viciar qualquer rapaz certinho até o ponto de ele roubar a bolsa da própria pobre mãe e começar a fazer propostas a bichas velhas, talvez fosse o menos perigoso, o único que não ia desabotoar a camisa e mostrar um cinturão de explosivos plásticos e um relógio em contagem regressiva marcando 00:03, com o sorriso de quem já venceu. O único. Eu estava tonto e as têmporas não agüentavam mais a pressão dos canos, mas talvez eu estivesse seguro.
— Você precisa da solução, mas é agora mesmo.
O que ele ia fazer, me oferecer suas ampolas, mostrar o seu pênis ereto pra sacar a minha reação?
— Amanhã eu lhe empresto a Crítica da razão pura.
Triunfante o seu olhar. Muito esperto, o sacana…
— Eu já li.
Preceito 171…
Pedi um pastel de carne e um caldo de cana na conta do Mautus. A partir de hoje, vou cobrar pedágio de todo mundo que quiser me sacanear.

[airton uchoa neto]

Nenhum comentário: