sábado, 26 de julho de 2008

TODOS OS FENOMENOS QUE IGNORAM AUSENCIA DE TESTEMUNHAS E OS BEBADOS QUE NAO DEVERIAM ESTAR LA, TODOS OS FENOMENOS MAIORES QUE AS VONTADES E QUE OS CALCULOS E QUE AS PREVISOES, MAIORES QUE OS PROTESTOS DE VOLTAIRE, MAIORES QUE A RETORICA PATETICA DOS HUMANITARISTAS QUE NAO CONHECEM O SER HUMANO — O QUE HA DE MAIS BELO EM NOS E SERMOS TODOS CRIMINOSOS EM POTENCIA E ESCREVERMOS SOBRE ISSO —, MAIORES QUE A AUDIENCIA DAS PROPRIAS CATASTROFES, TODOS OS FENOMENOS PACIFICOS DE FOGO E METAL GASEIFICADO PARA PULMOES DE PEDRA QUE NAO ADIANTA AMAR OU ODIAR O SOL VAI NASCER E NA VIDA DESSE HOMEM E DESSA MULHER O AMOR NA AREIA TERÁ SIDO APENAS EPISÓDIO —, QUE NAO ADIANTA ACHAR BONITO — O QUE VOCE ACHOU BELO MESMO FOI A SERENIDADE TRISTE DOS OLHOS DELA NO SOL FRIO DA MANHA NAO ERAM PELA SUA PARTIDA: ERAM UM ESTADO DE ESPIRITO VAO ACONTECER NOS HORARIOS PREVISTOS EMBORA NINGUEM SOUBESSE DE NADA ANTES. PORQUE SAO ELES QUE MODULAM OS RELOGIOS… A CIDADE, PELO CONTRARIO, CONTINUA UM PROBLEMA SEM SOLUCAO

quarta-feira, 23 de julho de 2008




Toda pertinácia seria o esforço por dar o volume máximo

À única chance de grito de alerta.

Sabe?

Gosto de poemas sem títulos:

Começam de repente, sem se apresentar, sem pedir licença,

Como o grito de alguém na rua que acorda todo mundo dentro da casa

Ou os passos furtivos de alguém que chegou tarde ou não devia estar ali

E fez latir os cães de ponta a ponta por trás das grades fechadas.

Antes gostava da idéia de cada livro ter apenas um único exemplar de uma única edição

E o mesmo para discos, danças, peças de teatro.

Tudo deveria ser único como os quadros e as esculturas que não tivera cópia,

Mas, naturalmente, nada deveria trazer a sua assinatura.

Tudo deveria ser único

Apenas

Por ser único.

Assim, veríamos, em tudo, a confissão desesperada de cada segundo que passa.

terça-feira, 15 de julho de 2008



O LIVRO DAS POSSIBILIDADES FRUSTRADAS

Deve ter sido muito mais do que muito interessante

— Deve ter sido algo definível por uma palavra que não me ocorre, mas que mesmo inadequada deve dar uma idéia de participação passional, ao contrário de interessante, que parece esconder as intenções reais (ser a máscara do cliente) ou não ser outra coisa que não a benevolência condescendente do superior ao mediano —,

Sim, deve ter sido muito mais do que interessante

Viver num mundo onde era fisicamente possível encontrar

Ana Cristina César,

Sem saber seu nome por extenso

E ser ter visto esse mesmo nome nas lombadas de livros à venda

Nem citado em artigos de jornais à venda,

E poder ganhar sua confiança a ponto de ser possível

— Se possível foi —

Ler seus versos ainda manuscritos

E gostar da sua originalidade imediata

Sem se preocupar com o significado de verbete da palavra imediato

— Quer dizer, no dicionário, não meditado —

Nem se angustiar com a possibilidade de aquelas palavras desenhadas à mão,

Assim tão pessoais e imprecisas,

Poderem não encontrar uma forma impressa,

Industrialmente reprodutível;

Sim, deve ter sido mesmo muito mais do que muito interessante

Viver num mundo onde era fisicamente possível encontrar

Ana Cristina César

E, depois de encontrá-la e de, talvez ganhando a sua confiança, talvez ler seus versos manuscritos,

Fazer o possível para reencontrá-la e ouvir sua voz de novo

E empenhar todos os esforços

Em descobrir sobre uma cama seu corpo nu e tocável

E ter nas mãos a dádiva de que isso se realizou

Ou a angústia tantalizante de ver isso escapando

Ou a dor impotente de ver isso negado

E ter que empurrar para frente o fato de que você continua existindo.

Isso já passou.

Esse número de possibilidades,

Talvez até concretizadas no coração de alguém que tenha conhecido

Ana Cristina César

No mundo em que fisicamente existia

Ana Cristina César,

Não são mais do que uma abstração,

Mas restou o mundo

Inadvertidamente mais vazio

— E a cada instante um pouco mais abandonado pelas possibilidades que se vão, e quantas puderam dar tudo de si? —

E repreenchido o tempo todo por vidas que começam

Como se nada acontecesse fora dos círculos familiares que as acolhem.

Até quando o ser humano irá desperdiçar o ser humano?

Quantas solidões medrosas ainda vão se preservar e multiplicar o isolamento?

Aquele que ler essas palavras

E sentir que ainda existe a solidariedade

Deve saber

Da solidez que a fé dá às barreiras imaginárias.

Falar, como quem denuncia?

Os problemas continuam sólidos:

Os rostos na rua continuam fechados

E os corações continuam presos na desconfiança

E a isso se chamou ter amadurecido.

Sei sim que tudo isso não passa de um lugar comum,

Mas eu quero mostrar esse vazio.

Hoje eu não quero ser original,

Mas quem já foi?

Quem já mostrou alguma coisa que não estava ali?

1983

Passou,

Ana Cristina César

Passou

Com esse ano inacreditável

Em que coisas que eu não imagino quais foram

Se passaram diante dos meus olhos mau despertos.

Você pode sonhar com o mundo em que era possível encontrar fisicamente

Ana Cristina César,

Mesmo sabendo que não adiantaria sonhar com ela,

Se fosse fisicamente possível encontrá-la:

Uma barreira a impediria de vê-lo,

Porque o desgaste dos seus sapatos não é customizado,

Porque suas roupas saíram de linhas de montagem com etiquetas imitadoras e subservientes a modas atrasadas,

Porque você não conhece Amsterdã e tem cáries,

Porque não saberia se portar entre as sexualidades novas nas boates de Paris e Nova Yorque,

Porque você tem que ser prudente e respeitar a polícia e tem hora certa para acordar, dormir e fazer as refeições,

Porque os seus dias seguintes são problemas que você tem que resolver,

Porque o Rio de Janeiro que lhe coube nao está nos cartões postais nem na Bossa Nova,

Mas não seria tão interessante esse mundo que você imagina

Quanto esse mundo real e pesadamente presente em que sonhar com o impossível é um pecado permitido?

Enquanto isso,

13 de julho de 2008

É mais do que um verso entediado:

É uma nuvem estagnada e invisível ao redor de todas as coisas e pessoas e dentro dos pulmões de tudo que respira e infiltrado por todos os poros abertos e frestas de portas e janelas fechadas e buracos de telhas,

É o cômputo de todas as promessas não cumpridas de felicidade

E a distância inútil entre corpos que se desejam sob cascas de pudor

E a lembrança de tudo que não se pode fazer com os bolsos vazios

E de todos os compromissos a cumprir no dia seguinte

E do aniversário da Revolução que abriu as portas para um novo mundo…

Que hoje está velho e já estava velho ontem.

Que insatisfações inconcebíveis esperam homens e mulheres para mergulhar numa nova revolução

Que torne o ser humano corajoso o bastante para ser feliz

E proclamar que tem um corpo acima do seu valor de uso e de troca?

Maldito mundo em que você deve desistir dessa pose de maldito,

Onde ninguém mais vê oráculos nos doidos

E os doidos são apenas um problema da saúde pública,

Lendas urbanas e lembranças folclóricas de bairros antigos.

Doidos são só gente que diz doidice

E anotar o que eles dizem é perder tempo,

Mesmo que eles dêem conta de um persistente apocalipse que se abate sobre a maldade renovada,

Mas quem lhe deu o direito de ser extravagante?

(airton uchoa neto)

domingo, 13 de julho de 2008

domingo, 6 de julho de 2008

O GRANDE HOMEM POSITIVO

Soube que o maior vendedor de esperanças fáceis do século XX acabou se matando.

Nunca li seus livros bem vendidos, ocupado que estava com a literatura antiga que os sebos vendem bem barato,

Mas imagino seu humor publicitariamente inteligente

E sua comunicabilidade muito ampla

Que sabia à multidão de mil comícios e a verbo amplificado e transmitido via satélite.

Ajudou muita gente?

É a dádiva máxima das cabeceiras no meio do Og Mandino, do Richard Bach, do Paulo Coelho e de traduções demagógicas da Bíblia?

Se a felicidade é aceitar como sucesso

Dar segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos e vidas inteiras,

Que não voltam,

Na construção do que não é você e do que não sou eu,

Então ele merece todas as flores de enquanto puserem flores no seu túmulo.

O sr. Sorriso Confiante,

O sr. Dízimo Contente,

O sr. Encontro de Casais Católicos,

O sr. Experiência Transcendental, Dom de Línguas e Profecia S. A.,

O sr. Tele Mediunidade e Disque Além,

O Grande Homem Positivo,

Mr. Amarican Dream For All,

Herr Terceirização Familiar,

Messier Personal Christ,

O maior vendedor de esperanças fáceis do século XX, porém,

Acabou,

Acabou se matando.

A novidade abandonou os seus títulos de ouro

E a tragédia não deus aos seus escritos uma aura de mártir comercialmente aproveitável como a do Che Guevara das camisetas.

No lugar, ficou o horror naqueles que esperam que os heróis sempre vençam.

Quem vai lutar contra o desperdício das almas?

Quem vai lutar contra o desperdício dos corpos?

Quem vai dar razão a esses lutadores?

Quantos prédios serão erguidos antes que cada livro de poesia saia de novas mãos teimosas para os olhos de ninguém?

Quantas vidas por tijolo consumiu cada um desses prédios magníficos?

Ele tinha a resposta,

Para isso e para tudo, antes mesmo que surgisse a pergunta.

Não importa se era a resposta certa porque era a adequada,

E ter razão é muito mais do que provar que se tem razão?

Nem mesmo os pais precisavam mais pensar no que dizer aos filhos.

Um manual de instruções que os países democráticos em desenvolvimento deveriam fornecer a cada um dos eleitores

E as multinacionais, a todos os funcionários,

Que deveria ganhar o selo do MEC e ser distribuído aos alunos nas escolas públicas

E vendido nos sebos apesar da etiqueta de “VENDA PROIBIDA”,

Um manual de instruções muito prático e que não exigia muitos conhecimentos prévios

Nem a rigor que se fizesse nada depois da leitura,

Porque a própria leitura já era a dádiva,

Se encontrava ao alcance de todos os bolsos,

Em edições de luxo e de papel jornal reciclado,

Dizendo o que fazer em todos os momentos e situações e a cada fase da vida.

Enquanto isso,

O mundo executivo o considerava um gênio

(Não consideramos, com muita facilidade, geniais aqueles que dizem apenas o que queremos ouvir?),

Os executivos júnior se vestiam como ele,

Os executivos sênior davam conselhos tirados do início de cada capítulo e neles inspiravam suas palestras,

Os estagiários carregavam sob o braço seu volume ensebado e marcado a dedo nas páginas mais relidas

E nas ruas sorrisos cheios de gratidão se abriam como flores amarelas à sua presença

Como no jardim amarelado e sufocante das noites de autógrafos.

(Fazia como os seus concorrentes

E citava nas epigrafes

O Exupéry, o Mark Twain ou até o Emerson,

Para que seus leitores se sentissem justificadamente inteligentes e espertos?)

Sem que ninguém visse,

Porque lá é sempre escuro,

Uma outra semente brotava no seu peito.

Não sei de tinha esposa e filhos naturais

— Além dos milhares que se consideravam recém-nascidos a partir da sua leitura —

Nem se dispersou clandestinamente sua fortuna

Como qualquer vulgar dono do mundo

No consumo destrutivo dos prazeres fortes

Que seus leitores bem-aventurados não esperavam mais da vida,

Que podem diminuir o número dos segundos a viver no futuro, alargando a cintura da ampulheta,

Mas que fazem com que cada segundo valha a pena como tempo ganho no presente,

Ou se lhe bastava a contemplação de muito alto,

Que esquece o céu sobre todas as cabeças,

E da multidão sem rosto composta de renúncias,

Gente crente de que deseja e de que pode chegar no mesmo topo.

´

Terá se aberto ali um par de olhos analíticos de mais e frios como a análise

Como os olhos do juiz acusador,

Que não ama nem odeia,

Ou de alguém que não participava da alegria geral e deixou muito claro que, não importa que palavras belas se diga,

Não importa em que canção doce se ajustem

Nem em que bordão publicitário elas explodam,

Matematicamente pensadas até nas cores e fontes,

Não importa,

NÃO,

Que palavras belas se diga,

O SER HUMANO CONTINUA SOFREDOR E SUSCETÍVEL,

Terá se aberto um par de olhos que lhe disse isso?

Ou terá visto da altura o seu avesso, que é o abismo?

Talvez se sentisse um vendedor de brinquedos quebráveis,

Talvez visse — o escândalo em potência da opinião pública — em cada leitor seu um otário que pede para ser enganado,

Talvez o seu sucesso não tenha comprado o amor dos filhos,

Talvez a mulher que ele desejava no tempo em que não era ninguém fosse fiel a um outro homem, que não se tornou nada, mas com ele ela era feliz.

Talvez ele se julgasse mais inteligente do que os próprios conselhos;

Talvez uma dúvida pretensamente maior que as existências humanas tenha permanecido,

Mas se matar por isso é se matar por nada…

Porque se matar por qualquer coisa é se matar por nada.

(O maior desperdício de coragem de que alguém é capaz,

E os que ficam dizem que foi covardia

Se antecipar à natureza

E decidir por si mesmo a hora final

No relógio sem ponteiros dessa bomba de implosão.)

Seus leitores — homens inseguros e mulheres desprezadas —

Já tinham abandonado essa idéia como possibilidade.

Encontraram nos seus livros a tábua solta do navio depois do naufrágio

E esperavam com ela chegar ao litoral:

A terra que ele abandonou com as próprias mãos

Para mergulhar num mar sem superfície.

Ele era como qualquer um a quem pode faltar alguma coisa.

Era como qualquer um

E precisava da ajuda dos outros.

Era como qualquer um

E era mortal e pôs à prova essa fragilidade.

Talvez tenha tido a ilusão

De que as mãos invisíveis que tornavam à prova de vida

O corredor branco que dá acesso a uma placa esmaltada com seu nome numa porta

Tinham abandonado a sua função anônima.

A ausência dessas mãos cuja presença não deixava marcas deixou sua impressão pelo avesso

No canto em que os pernilongos descansam sua engorda.

Todas as outras mãos que cuidavam do que parece que não tem importância

E negavam com seu esforço diário a ação constante do tempo

Também tinham ido.

Os tufos de cabelo nos cantos empoeirados dão conta da passagem de gente por ali.

Passaram todos; ninguém ficou.

Nenhum ouvido estava lá para suas queixas inúteis.

Nenhum ninguém restara.

Os telefonemas urgentes deram conta

De que ainda havia mãos invisíveis garantindo a comunicação e o trânsito incessante dos negócios entre as pontas dos fios,

Mas na outra ponta desse fio,

Posto para esperar ao som hipnótico de caixinhas de música sem bailarina,

Ele percebeu que seu nome mudou de lugar nas agendas dos líderes

E que as secretárias desses homens e mulheres importantes não tinham mais na memória o seu número,

A não ser se renegado para o rol dos intocáveis.

Despertou.

Despertou no mundo real em que era reverenciado e inacessível,

Isolado da existência dos que não sabiam como ele se chamava.

Despertou

Para perceber algo que ninguém nunca saberá dizer o que foi

— Talvez uma pequena mancha no seu nome na placa esmaltada,

Que cresceria caso ninguém cuidasse disso,

Talvez algo menor e menor até a invisibilidade,

E, seja o que for, terá sido, de algum modo nada,

E o empurrou —,

Para acabar, acabar se matando.

Foi enterrado com o espanto ao seu redor

E sob a ameaça de um esquecimento urgente.

Sua lápide era um palácio

Em breve não saberão por que.

E, ao redor do símbolo da grandeza que acabou,

Para que todos vejam e saibam e mesmo que não vejam e saibam,

Floresce a grama.

(airton uchoa neto)

sábado, 5 de julho de 2008

OS ESCRITORES DO PRESENTE

O destino marcou encontros pontuais entre você e a injustiça.

— Acha, então, que essa é a sua missão, alertar os desavisados?

Ontem ele entrevistou o Corrupto Parnasiano no salão de festas de sua (do ilustre CP) academia particular, e garçons serviam bebidas caras e petiscos refinados. As velhas esposas das personalidades conversavam ao fundo: a única certeza é que elas não irão tocá-las porque falta no mundo o heroísmo. Esse foi o cenário de ontem.

— Eu não tenho missão nenhuma. Sou apenas um instrumento de registro, sismógrafo movido por abalos que não fui eu que causei.

— Palavras alheias não vão salvá-lo.

O cenário — HOJE — é um extenso terreno baldio, à noite, entre os 500m de falsa tranqüilidade que separa os dois conjuntos habitacionais. O herdeiro não reconhecido do Intelectual Engajado, o Cara Que Desconfia ou o Traficante de Informações Pseudo Sigilosas, e o Entrevistador Engomadinho, conhecido no submundo (as portas se abrem automaticamente com a sua presença magnética) como o 100% Pura ou o Eu-Sei-O-Que-Elas-Querem, sentam-se em poltronas quebradas, cujas pernas criam raízes na terra que os lábios pacientes dos cavalos amaciaram.

— As palavras são de tooooooooooodo mundo.

— O senhor é um fingido. Quer trabalhar pouco e ganhar muito. Quer ser famoso e ter admiradoras pra levar pra cama.

— Mande me prender. Sou um preguiçoso.

— Prender? Gosto muito de gente que me faz rir.

Na ilha de edição os sujeitos com dedos magnéticos transformam o Escritor Não Publicado num estúpido. O Corrupto Parnasiano comenta: “Muito espirituoso, esse rapaz”. Fala de todos como se fossem sempre muito mais jovens e tivessem coisas demais para aprender ainda, mas leva na esportiva. No seu meio são todos muito liberais, não é?

“Tudo que eu esperava era que um grupo de ladrões reivindicadores começasse a publicar os cordéis anônimos da incerteza.”

Ele tem razão. O censo, por exemplo, devia pensar em novas perguntas.

— A senhora ainda acredita no ser humano?

A morte está em tudo e todos os lugares. Não é uma promessa para depois; é a traição de agora. — “É verdade. Em 1999 eu achava que tinha futuro.” — As coisas começaram a se mover dentro de uma gás metálico que torna tudo mais lento.

.Cotidiano.

Parri, matri, fratri, filiicidas, sob a mira de câmeras fatais, olhos salivantes de vidro, e a vaia das hienas raivosas, a romaria dos justiceiros e dos acusadores.

O ESPAÇO SAGRADO DAS ONOMATOPÉIAS.

Os sinais fechados do destino continuam imaculados.

— Nada de novidades, então. São todos moralistas famintos.

O que seria dos moralistas se não fosse um mundo com ruas de cidades em que há, a negócios e/ou por diversão, mulheres nuas e homens vestidos de mulher?

A multidão das tochas bate na porta.

— “Que querem de mim a essa hora da noite?”

— “Soubemos que você abriga dois efebos depravados.”

— “Sim, é verdade. Qual o problema?”

— “Traga-os para fora. Queremos lhes passar sermões, dar a eles lições de moral, impor-lhes a castidade e casá-los com mulheres honestas que não gostam de sexo e com as quais não precisamos nos preocupar.”

— “Escutem aqui: eles são meus hóspedes e eu devo protegê-los de todas as ameaças.”

— “Não discuta conosco; queremos moralizar os efebos depravados que você abriga. Já!”

— “Eu tenho duas filhas perversas e incestuosas. Ensinem-lhes boas maneiras e respeito por si mesmas; façam com que usem vestidos sem decotes. O que quiserem. Mas nos meus hóspedes vocês não tocam.”

— “Então vamos tirá-lo daí à força!”

Tão melífluos! Eles defenderam seu anfitrião. Revelaram-se vingadores, armados de consolos e lubrificantes.

Um filme tolo que logo vão ter a idéia de filmar sem nem me pagar os direitos autorais. Enquanto isso, Os Caras jogam cartas e dominós com aposentados trapaceiros, enquanto não chega a hora de pôr o urucum no rosto.

— Vaidoso, você. Fala sempre de si mesmo até quando parece que fala dos outros. Considera que é um assunto interessante que nunca se encerra.

Parte de uma geração que de repente olha no espelho e percebe que tem a idade que aparenta.

— Tanto interesse só porque você nunca terá uma visão direta do próprio rosto nem a audição da sua voz como os outros a escutam. Procure alguém a quem amar e toda doação fará sentido.

Crer em velhos sonhos sentimentais para esquecer que o mundo é triste, sustentar ideologias recicladas do passado que faliu, se entregar cinicamente — uma vitória — ao hedonismo mendicante.

O estilo 19 diria AH e OH pra tudo isso.

— No que nos tornamos afinal?

— Naquilo que sempre fomos.

Enquanto houver prostituição barata e for possível dar calote em bares, leva-se a vida com esses pés (todos os malandros já manjaram esses malucos) sobre essas ruas: áfricas, brasis, clássicos subdesenvolvimentos, tigres de papel impermeável, maracas do progresso espatifadas no chão, américas de espanhas com ruas de fogo e cana-de-açúcar, café, tabaco — ¡como cuba non recuerdo! — o código secreto ao céu aberto da lama nas sarjetas, identidades diluídas, tristes homens e mulheres de países frios, desesperos wasp, amoks, kitschs, desidratados terrosos minaretes contra céus de chapas de aço, famílias decadentes de agregados e múltiplas paternidades, crimes classe média que dão semana no jornal, fugitivos escondidos foragidos refugiados sem asilo sem anistia sem salvo conduto sem jornal do dia para ver a sua foto (no lugar o crime classe média e o vício terceiro milênio: as celebridades aderiram a todas as causas e ondas do momento), monótonos silêncios de água estagnada em casas velhas que o ano passado ergueu, criaturas preguiçosas e sem nome que se comunicam com tecnologias atrasadas e ortografias fora de uso, os destinos lentos de quem não se sente agir na história, o desespero dos pesadelos congelados, o momento desnudo dos garfos suspensos diante de bovinas bocas abertas.

A voz grita o NÃO raivoso dos instintos contra tudo.

Os comedores satisfeitos ignoram: na imperceptível câmera lenta, diante dos olhos agudos do escritor que não descreve nem instrui, os pedaços cortados de carne morta continuam seu caminho rumo à prensa torta dos dentes.

— “Adianta ter pressa não. A pressa passa; a merda fica.”

Tubulações cobertas de lodo, fiações expostas, subterrâneos umedecidos, motores envenenados, latarias assimétricas, muros escuros de janelas apagadas que se afastam e se aproximam ao som de passos apressados e trôpegos, ruas com poças sujas de depois da chuva e, nas poças, o óleo de motor que se contorce como se doesse, fuga de ninguém em avenidas abertas, máquinas de sucção que rezam seu metal, indiferença a todas as promessas, olhares zombeteiros de sexualidades ambíguas, toda uma fauna que oculta armas caseiras, soníferos piratas e intenções malévolas, como se o instinto do caçador pudesse ser julgado. A cada beco sem saída tudo desmorona e tudo que quer o homem sem pálpebras é dormir na calçada como os bêbados sem teto.

E sobre mim, sobre eles todos, escritores desse tempo negados no agora, alguma coisa que esqueci — chave de ouro: é o livro dos esquecidos — e permanecemos desse modo — SIM — assuntos sem conclusão

(airton uchoa neto)

OS ESCRITORES DO FUTURO

Não haverá bastante isenção crítica que os salve.

— Eu trabalho numa instituição séria. Enquanto eu for reitor dessa universidade, nenhum formando vai me aparecer com artigos elogiosos sobres esses indivíduos subversivos…

— Mas, senhor, “subversivo” é um arcaísmo vulgar.

— Que seja. Eu luto é do lado do povão mesmo. E diga a essas anarquistas metidos que se concentrem em edificantes e instrutivos romances espíritas.

Quem duvidaria da palavra de um morto?

— Mas, senhor…

— Eu sei, eu sei, “anarquista” também é um arcaísmo vulgar, mas eu sou dos saudosos tempos da lapada na rachada!

Os homens contra tudo — nunca atravessaram portões para concursados — não dependem de nada. Do lado de fora da tipografia clandestina (ele só lê as páginas policiais e sabe que falam dos personagens errados) o amor secreto das meninas rebeldes da classe média — “Meu coração, baby, já está morto. Só o que me resta é uma cabeça para manter sobre os ombros” — fuma um cigarro e repara o movimento como uma onça entediada.

O que ele faz quando as procurações revogáveis com prazo de validade prestes a vencer não o mantém mais nas calçadas sob os olhos caninos e impotentes da desconfiança raivosa; quando ninguém sabe onde ele se encontra? Ora, escreve sob o efeito de anfetaminas e se torna — anacrônico — “nosso herói”, e ninguém nunca enxerga no seu verbo o Nunca mais. Um público anônimo inveja suas aventuras e os jovens fazem canções sem rima em sua homenagem.

O homem que atira na cabeça se questiona.

— Um mundo de lunáticos. Todos querem viver a minha vida.

Pedagogos, educadores, psiquiatras e outros cientistas se debruçam sobre o assunto: um novo método de lobotomia — “Ja, é um processo rádio-magnético que não precisa de incisão” — é aplaudido de pé em palestras lotadas.

O comprador de revistas acadêmicas (ignorou o assunto do momento e a tendência filosófica da moda) vai direto para a página dedicada à educação infantil e desenvolvimento da criança: são os termos técnicos da sua poesia babilônica, onde o eu-lírico põe meninas para dormir sob o efeito de narcóticos para despi-las e banha-las com leite, — como diz a canção, para matar a sede, para matar a sede. — Um quarto cheio de fotos de famílias alheias (férias e finais de semana em litorais à flor da pele), jarras de guloseimas meio derretidas e bonecas em tamanho natural que vestem roupas usadas de meninas de verdade — “Meu bem, tudo teria sido tão bom se você não tivesse gritado!” — pelos velhos tempos e reserva para futuros difíceis. A influência da pedagogia antiga e dos manuais católicos de educação sexual fez com que ele escrevesse com ortografia pré-72: uma perversão natural já estuda em artigo. Ele ainda não sabe que homens cheios de autorizações carimbadas fazem uma contagem regressiva ao pé da sua porta.

Elas ouviram lá debaixo. — O mesmo de sempre — disse uma delas. Não foi a que escreve romances de amor à moda antiga que sempre terminam em navalhadas? Ela sabe cantar a tristeza como uma sereia bêbada, mas, bebendo mais que os caras na mesa, nunca se embriaga. Ela sempre sabe do que fala: conhece todas as mentiras e perdoa. O fadobolerotangoguaraniabluesflamengosambachororancheiro da sua existência derruba histéricos chorosos com o polegar metido em bocas sugadoras e ânus piscantes. O bando armado das suas amigas diz à meia voz: “Fingiiii-da!” Mas — onde todos somos iguais não existem culpados — é bem real que a sua ração está chegando ao fim e isso significa alguma coisa: ele estará na esquina certa, esperando como se fosse dono do tempo: porque o tempo é mesmo dele.

Cercado por corpos secos e choros de mães dolorosas. Pensa: “Eu sou a luz na idade das trevas”. Ele nunca se desespera porque sabe que eles vão aparecer. Sempre fazem tudo pela dose seguinte. Enquanto isso, ele se exercita. — “Sou o último metafísico.” — Toda uma poética racionalista saída da dureza enferrujada dos seus dedos finos.

O homem que atira na cabeça assiste de longe a transação. Pensa:

“Sim — o espetáculo do mundo por dentro. A lágrima da menina que eu seguei com beijos: por que precisamos sofrer tanto? Acabaram-se o palco e platéia. Depois que os olhos se abriram — senti mesmo o desejo de protege-la de tudo, mas era querer ser outro numa velocidade inferior — restou apenas tomar uma posição estratégica e se preparar para atirar, com a certeza de que a munição sempre acaba cedo demais, com a certeza de que se está derrotado desde o primeiro movimento do peão.”

Tudo que queria era escrever uma canção que o fizesse sentir que o passado passou e que hoje somos inacreditavelmente felizes.

Mas uma mesa de vidro fria cercada de homens precisos e seguros — mais cedo ou mais tarde cumprirão o seu dever — aguarda dentro da sua indiferença de coisa.

A mesa de vidro faz parte de um inventário vitorioso de tudo que foi feito para sobreviver ao ser humano. Todos os objetos em que não cabe assinatura.

— Nunca na vida senti tanto cheiro de pólvora na rua.

— Também nunca fizemos tanto sexo. Homens e mulheres, estão todos loucos e tudo parece normal.

Livros clandestinos que todos lêem e de que ninguém fala permanecem bem guardados, como se as crianças não pudessem encontra-los.

— É. Agora você sabe o valor de cada segundo.

O futuro de uma geração que pode ter esperança. Como eu gostaria de acreditar nos meus sonhos!

(airton uchoa neto)

C L A U S T R O F O B I A


Nunca tive oportunidade de lhe perguntar sobre o seu processo de criação. Me constrange um pouco não saber pra quem se armam as melhores armadilhas que se encontram nas suas histórias. Os narradores ficcionais acabam adquirindo uma verdade quando, em algum momento, traem sutilmente os seus próprios segredos, de uma forma que um leitor menos perspicaz, desses interessados apenas em chegar ao fim de uma história, não é capaz de perceber. A dúvida é se o seu criador real e encarnado, que anda pelas ruas sem que as pessoas ao redor desconfiem do que se passa na sua mente, como o homem que cometeu o crime perfeito pelo qual nunca será descoberto (sua maior dor é não poder revelar sua obra de arte: não por medo da condenação: é que revela-la é traí-la), quis que suas personagens se comportassem assim ou se foram elas que se revoltaram e resolveram tomar seus próprios rumos: parecia que traíam a si mesmos deixando pistas do que eram na verdade e escondiam ser, mas podem ter feito isso de propósito: deixaram pistas ao criador do que eram e o criador não sabia. — O crime não foi traído em sua arte: foi coroado. — Seu criador continua trabalhando, se locomovendo, tecendo relações humanas normais e — ninguém suspeita de nada. (Podem descobrir até seus escritos e lê-los e elogia-los e publicá-los: o segredo de morte é outro.) Espero que ele próprio nunca se esqueça e nunca se deixe pegar de surpresa. — Mas não: eu também não sei do que se trata. — Apenas conheci um sujeito um pouco estranho, mas ao mesmo tempo muito cordial, cujo único defeito era a sua linguagem demasiado castiça (falava como se redigisse uma carta comercial), com o qual muito conversei sobre ciência: o sujeito conhecia todas as suas realizações e promessas e falava do assunto como um entusiasta, mas também sabia dos seus limites e os criticava: eu não sabia que ele se parecia com uma personagem de um conto do Elvis… até o dia que eu li, e, por coincidência ou não, nunca mais tive a oportunidade de conversar sobre ciência com aquele sujeito que tomava parte do caminho que eu tomava pra casa — sumiu antes de eu me lembrar de perguntar a ela: como se chamava. — Talvez isso nunca tenha acontecido ao Elvis, talvez aconteça o tempo todo e ele já esteja acostumado. — No final eu sou como aquela parte da população que sabe que não sabe e vive desconfiada. — Como anda a memória do criador? — Nunca tive oportunidade de lhe perguntar sobre o seu processo de criação, mas há coisas que uma pessoa minimamente civilizada sabe que não deve perguntar à outra.



Todo homem possui em sua mente uma região de sombras onde jazem as lembranças mais odiosas e tétricas que tentamos olvidar para sempre. Quando, porém, um abalo incomum ou uma tragédia fazem essas lembranças profundamente enterradas e reprimidas virem à tona, o resultado é, no mais das vezes, o ocaso da consciência e a decadência da alma. Esta foi, infelizmente, minha sina, e é o que relatarei a seguir.


Há mais de oito anos que trabalho num escritório de contabilidade juntamente com cinco colegas contadores. Nosso escritório é localizado num edifício muito antigo de onze andares – o “Realeza” –, construído no início do século XX, e que passou por reformas na década de 1960 e depois em 1986.


Não era exatamente meu sonho passar o dia numa sala fechada com papéis e números, já que sonhava trabalhar ao ar livre, no campo, talvez. Porém, a vida geralmente nos carrega para onde não queremos ou não planejamos, pois no mundo atual os sonhos ficam em segundo plano: em primeiro lugar vem sempre o dinheiro.


Felizmente, nossa sala de trabalho fica no segundo andar, de forma que posso subir e descer pela escada sem precisar utilizar o infame elevador – para mim, um pesadelo. É claro que era objeto de piadas dos colegas – que conheciam meu temor incomum -, mas isso pouco me importava: pior seria me arriscar à toa, utilizando aquela coisa apertada e fria, o que não fizera de forma alguma nesses oito anos.


Todavia, numa sexta-feira chuvosa do mal-afamado mês de agosto, o dono de uma empresa – e nosso novo cliente – que se localizava no 11 º andar do mesmo prédio, exigiu explicações sobre o fechamento contábil de sua empresa. Meus colegas logo se eximiram do encargo e me indicaram para a tarefa. Aborrecido e muito a contragosto, juntei os documentos necessários numa pasta e saí para minha missão.


O longo corredor se encontrava vazio e pouco iluminado devido ao tempo escuro, pois chovia torrencialmente lá fora, conforme era possível ver através das janelas de vidro do prédio. De longe, avistei a porta do elevador – causa de meu tormento. Não apressei os passos: caminhei vagarosamente, dividido: uma parte de mim rezava para o longo corredor não chegar ao fim e prosseguir indefinidamente; outra, dizia-me para terminar rapidamente tudo aquilo e me livrar de vez daquele calvário. Não preciso dizer que a primeira parte predominava. Depois de uns 80 passos, cheguei em frente à porta. Trêmulo, pressionei o botão de subir e aguardei angustiantes segundos. Olhava o relógio incessantemente, bem como a chuva pela janela, e comecei a sentir minha pressão baixar.


Finalmente, o ascensor chegou e a porta se abriu. Não havia ninguém dentro e pensei muito antes de dar os passos decisivos. Respirei fundo e entrei de uma vez: precisava acabar logo com aquele pesadelo! Apertei o botão “11” e a porta vagarosamente se fechou, para meu desespero íntimo. O elevador começou a subir, e resolvi repetir baixinho – mesmo indo contra minhas convicções – as orações que minha tia havia me ensinado há muito tempo atrás, pois nos momentos críticos o racionalismo cede lugar às crenças e superstições seculares adormecidas em nossas mentes.


Como uma maldição resultante de meu medo, ao chegar próximo ao décimo andar (faltando apenas mais um para chegar a meu destino), o aziago aparelho parou inexplicavelmente: não havia sido acionado por ninguém, e tampouco a porta se abriu. Segundos apavorantes se passaram, e quando caí em mim, comecei a apertar incessantemente todos os botões que via, mas em vão. Um suor frio começou a escorrer de meu rosto e meu coração disparou. Comecei a bater na porta e nas paredes daquela clausura metálica e gritei o mais alto que pude, mas ninguém parecia ouvir meu socorro. Minha esperança renasceu quando me dei conta do interfone, mas para minha desgraça o aparelho estava igualmente inutilizado. A pane elétrica – coisa não tão incomum no Realeza - atingira também o sistema de refrigeração, de forma que o calor ficou insuportável. Porém, não tive ação sequer de tirar a roupa, pois tremia de medo sentado num canto, aturdido e tentando fazer-me crer de que estava passando por um daqueles pesadelos “reais” que temos de vez em quando. Mas não o era, infelizmente. Passaram-se minutos eternos e comecei a chorar.


Vieram, então, lembranças de muito tempo atrás, quando tinha apenas oito anos e a vida me era muito pesada: havia perdido minha mãe com alguns meses de vida, e fora criado por meu pai – um verdadeiro carrasco na acepção da palavra.


Nós morávamos em uma fazenda no interior do Nordeste, num casarão que no século XIX havia sido a morada de um senhor de engenho, nosso antepassado. Escravos haviam vivido ali, em compartimentos escuros, apertados, tétricos e insalubres, que constituíam a senzala. Havia restos de correntes grossas e dos equipamentos rústicos que utilizavam em seu trabalho insano: a produção de açúcar e rapadura. Este senhor, que a família evitava citar até mesmo o nome, havia sido morto cruelmente por um grupo de ex-escravos, em vingança pelos maus tratos que por uma vida inteira tiveram que suportar. Pelo que descobri, a tortura que sofreu não foi nada comparado ao que proporcionava aos pobres negros.


Vi certa vez um quadro onde estava pintado seu retrato, e ele me lembrou imediatamente meu pai: a barba longa, o semblante sisudo, a cabeça calva, a testa franzida e os olhos amargos e tristes de quem odeia até sua própria natureza. Se existe reencarnação, meu pai com certeza era resultado do retorno de meu impiedoso antepassado, morto em condições indizíveis. Como se fosse por uma vingança incompreensível, o desgraçado parecia querer descontar em mim todo o ódio e a infelicidade que trazia em sua alma, frutos, talvez, de lembranças ocultas em seu inconsciente tenebroso.


Banhos gelados, chicotadas e tarefas muito além da capacidade física de um menino, faziam parte da gama de torturas que ele me presenteava quase diariamente. Também, vez por outra, acorrentava-me como se fazia com os antigos escravos. O pior de todos os castigos, porém, era quando aquele homem cruel me prendia nos aposentos escuros e apertados em que os negros eram presos quando cometiam algum ato de rebeldia. Quando ele ameaçava me trancafiar, eu derramava rios de lágrimas em seus pés, implorando por todos os deuses e santos para que não cometesse aquele ato tão desumano, mas dificilmente ele atendia a meus apelos, e acabava me puxando pelo braço para a sombria clausura.


Nesses quartinhos escuros e medonhos, a umidade das paredes deixava exalar um odor nauseante, e lá cheguei a desmaiar várias vezes de tanto pavor e desespero, pensando ver aparições macabras dos negros mortos tempos atrás, e até mesmo ouvir seus gritos de dor. Numa noite em que o carrasco havia bebido muito além da conta, o desgraçado me prendeu numa gruta que havia em nossa propriedade, e fechou a entrada com uma pedra. Naquele buraco escuro, passei toda a noite e parte do dia seguinte, e não morri porque o corpo parece ter muito mais resistência que nossas mentes. Como não enlouqueci completamente, não sei, mas herdei neuroses várias e profundas que me acompanhariam até meus últimos dias. O medo do escuro, de estranhos e, principalmente, de lugares fechados eram os mais freqüentes. Este último era pra mim um grande tormento e por isso fugia, tal qual um menino assustado, de lugares pequenos e fechados como um elevador...



Essa maldita fobia consumia meus nervos, e amaldiçoei meu pai por muitas noites depois que me livrei de seu jugo, graças à intervenção de uma tia que morava na Capital e que presenciou minha tortura, me livrando finalmente daquele inferno. Graças a ela que ainda consegui certo equilíbrio mental, pelo menos o bastante para conseguir estudar, ter uma profissão e manter uma vida sadia, na medida de meus limites, claro. Evidentemente, as marcas da infância são muito fortes, e não somem nunca de nossas almas, mesmo que pareçam adormecidas.


Todas as lembranças ominosas que tentava a todo custo enterrar – inclusive apelando para analistas, psicólogos, psiquiatras e todas as drogas que receitam – emergiram quando me vi preso naquele elevador medonho e sinistro, encolhido num canto como quando meu pai me prendia na clausura dos antigos escravos. Meu tormento chegou a um ponto que me vi completamente enlouquecido, como se algo dentro de mim – uma aflição que parecia um calor ou algo parecido – quisesse sair a todo custo de minha alma, causando-me dores e sensações que há muitos anos – desde minha infeliz infância – não sentia.


Passei a puxar meus próprios cabelos e a esmurrar as paredes. Emitia gritos incomuns e uivava como um lobo preso a uma armadilha. Meus punhos sangravam e rasguei minha roupa de forma completamente insana. A luz do elevador passou a piscar, e pensei ver neste momento o fantasma de meu maldito pai - o carrasco causador de tantos traumas em meu corpo e em meu espírito. Naquelas visões ensandecidas, ele se mostrava com um riso sarcástico e os olhos flamejantes de ódio, como foi em toda sua vida. Parecia desejar meu fim e mostrar que de alguma forma iria lhe acompanhar para o lugar infame onde deveria viver desde sua morte, talvez o próprio Hades. Meu desespero foi total, e passei a bater a cabeça nas paredes metálicas do elevador, o que parecia só fazer aumentar sua glória. Por incrível que possa parecer, existem homens que sentem um prazer indefinível ao ver um animal ou mesmo um semelhante agonizando de dor. Os torturadores devem sentir algo assim, bem como os psicopatas. Infelizmente, tive uma dessas almas perdidas como meu genitor e pagaria a vida toda por este infortúnio.



Por fim, encontraram-me caído, inconsciente. Escrevo estas linhas no hospital onde estou internado, com inúmeras fraturas e cortes por todo o corpo. Também estou sendo acompanhado por um psiquiatra, mas já conheço seus métodos e tratamentos ineficazes, pelo menos para mim. Na cama ainda vejo, quando o médico e as enfermeiras saem do quarto, o fantasma amaldiçoado de meu pai à espreita, aguardando meu fim. Não suporto mais essa situação e por isso porei agora um termo nisso tudo.



Ele ri medonhamente, pois sabe que chegou minha hora. Também haverá tortura no além?


(julho/07)


[por Elvisney de Moura]