sábado, 9 de agosto de 2008

OS DOCUMENTOS Ka: I & III


A DISCIPLINA K: PROGRAMA CONFIANÇA CEGA

Ouvindo falar sem prestar atenção sobre filmes lentos de países fodidos que ele poderia assistir sem legenda só pelo prazer de ouvir a música de vozes que não lhe diziam nada, como se estivesse cercado por fiéis no exercício dos seus dons de línguas, caso isso fosse um prazer. Mas o sujeito que se submete a ressacas e sai por aí experimentando substâncias estranhas sente prazer com coisas estranhas e dorme pesadamente onde nenhum ser humano normal conseguiria tirar o cochilo mais leve. — Pensa que eu tou ouvino o que tu ta dizeno? — O galo cantou. As vozes continuaram porque os seus ouvidos eram um acidente e a gente sabe o que dizem dos incomodados. — Até os retro-vírus estão tomando uma posição. — Era uma voz de mulher.
— O que eu queria saber mesmo era por que e sobre o que os retro-vírus se posicionavam.
— Posso te ajudar nisso não. Vai ter que perguntar a quem disse.
Parecia uma conversa ouvida sem querer de uma mesa pra outra com o barulho do trânsito do lado de fora. De repente ele acordou no sofá desconhecido de uma casa estranha, sem saber se ao menos o galo tinha sido real. Basta fechar os olhos, deixar que eles, olhos, se fechem com o próprio peso das pestanas, pra que outras vozes pedantes comecem a conversar assuntos disparatados que só os inteligentes entendem.
— Ora, você dormiu no sofá de um cara que não conhece. Se preocupe não. Se ele quiser falar mal de ti, nada vai impedir.
Por alguma razão prefere o rótulo de otário que lhe deram na rua, pelas costas, e a indiferença dos palestrantes à falência de sua vigília. Porque o espírito está pronto, mas a carne… O pior foi achar que ouvia os gemidos de gente transando nos cômodos, achar que o mundo era uma grande festa para a qual não tinham convidado ele, se aproximar das paredes e não ouvir nada além dos rumores próprios do vazio e não se sentir melhor por ter perdido a esperança de estarem fazendo alguma coisa às escondidas.
— Nem vale a pena.
— Então parou?
Duas frases que, em algum contexto, fizeram sentido. Aquele jeitinho feminino dela — “Nem vale a pena” — de tomar decisões! Mas ela não podia estar lá, e não estava lá mesmo.
— Eu não vejo ela faz um tempaço. Pensava que tivesse esquecido.
— As coisas não se esquecem, não. Se escondem. Mas acho que o que você viu foi real e você só não sabe interpretar. Já ouviu falar dos K?
— K?
— Os russos pronunciam A. Já ouviu alguma referência?
— Nunca.
— Pois se não se esconder a tempo vai ouvir falar muito sobre o assunto.

— Senhores, as piores épocas são aquelas em que ninguém percebe que tudo está prestes a desabar e, mesmo que soubessem disso, estariam se lixando. Os que identificaram épocas como essa com os dias de hoje estão lamentavelmente… corretos.
O soldado, mal sentado numa cadeira de escola primária, levanta só o braço, quando deveria marcialmente se levantar inteiro, o que não pôde fazer exprimido daquele jeito.
— Desculpe, senhor, mas creio que foi sempre assim.
O mais constrangedor era a timidez culpada de efebo, que seus colegas de caserna conheciam tão bem.
— O senhor é jovem.
O superior se aproximara a passos lentos e balançava a cabeça numa afirmativa cínica — “Deus, foi mesmo esse mundo perverso que fez dos meus soldados sujeitos que defendem o tempo todo o próprio cu e só eu sozinho tenho que pensar na pátria” —, prolongando as vogais enquanto falava — ooooo seeenhooor é jooovem — e fazendo sua constatação pesada cair sobre as costas do soldado.
— Soldado… só para começar… onde está sua venda?
Ninguém sabia como fora parar ali, porque seguiram as instruções de permanecer com os olhos vendados do QG ao campo de treinamento. A instrução era não tirar a venda antes da ordem de um superior, pouco depois sucedida de uma ordem de pôr a venda de volta sobre os olhos.
— Eu… tirei… senhor.
— O senhor… o quê?
— Tirei… senhor.
— E por que o senhor… tirou… soldado?
— Porque eu queria ver… senhor.
— Bravo, soldado. Quero ver é o que o senhor fará quando não tiver olhos ou quando os olhos forem inúteis.
Ele não parava de pensar, o superior: “Protegendo o próprio cu, como se adiantasse”.
Foi um mal dia de treinamento, esse do início, sob o ponto de vista dos soldados, mas o superior gostou de ter tido razão pra gritar com alguém e imaginar o cu desse alguém se contraindo como um pouco que foge.
Nos dias seguintes, os soldados aprenderam a sedução sem toque, o suborno sem dinheiro, a chantagem sem ameaças, o roubo sem objetivo e a extorsão sem lucro. Dois soldados enlouqueceram porque acharam que, com esses conhecimentos, seriam os homens mais poderosos do mundo depois que dessem baixa. Acabaram internados e postos pra dormir sob choques de insulina.
— Senhores, esse é o destino de todos que agem sem patriotismo.
— Mas, senhor, quando vamos conhecer nosso inimigo?
— Nunca. Quando o conhecerem estarão derrotados. Nossa vitória consiste em mantermos tanta distância dele até duvidar que ele exista e esquecer que ele é a razão de estarmos aqui.
O soldado que criou problema no primeiro dia acabou se revelando o melhor nos treinamentos e nas aulas teóricas. Ninguém estranhou que parasse de dormir no alojamento e que o perfil de sua nudez tenha sido visto projetado pelo lampião na lona da tenda do superior, ao lado da semi-nudez peluda e superior desse último, que nunca descalçava as botas nem tirava o chapéu de campanha.
— Sabe, soldado, adoro me sentir um espartano de jarro.
O soldado ficou calado, porque preferia se sentir um ateniense… de pires.

— Essa é a história de um batalhão secreto formado por cara que, como você, começaram com a alucinação.
— Por que esse exército foi formado?
— Há um segredo revelado que diz que não é pra nada, e um outro que diz que a sua missão é apenas destruir a si mesmo.
O sujeito ergueu uma face iluminada — Os mais nobres guardiões. Quero me engajar — e passou os dias seguintes com uma mochila nas costas, procurando se alistar, mas era sempre recusado sob todas as alegações possíveis e uns sacanas de farda verde-oliva que não podiam fazer nada por ele aceitaram o seu suborno inútil e deram o fora. Passou a perambular sujo e consumido ao redor dos batalhões e dos quartéis e dormia nas calçadas sob as guaritas da Luciano Carneiro. A última que eu vi ele ele fazia formação, usava uma vassoura como fuzil e os classificados como capacete da guarda napoleônica.
— Parabéns, soldado, conseguiu sua patente no batalhão especial de operações invisíveis.


RESIDUAL K

— A paz do Senhor, irmão.
Eu andava com os olhos no chão escaneando o terreno, recolhendo vestígios da História e buscando novas sinapses ou nascera de repente num mundo inédito munido de lembranças completas, como no teorema maluco do Bertrand Russell, mas aquela mão no meu ombro que parecia dizer — Te peguei — me fez despertar como se renascesse, enquanto um arranjo de guitarra de uma canção do Led Zeppelin rasgava o meu cérebro, e eu sentia que todos podiam ouvir aqueles choques elétricos ou que o som estava ao fundo, como se eu fosse um personagem numa série de televisão americana no auge de uma cena de pesadelo. — Te peguei. — De onde é que eu conhecia aquele sujeito? De onde é que ele me conhecia?
— Desculpa. O que foi que você disse?
— A paz do Senhor, irmão.
Eu estava tão desbaratado (desbaratado é o estado de espírito do cara que perdeu o rumo de suas baratas de estimação) e me sentia tão repentino e coberto de placenta que se ele dissesse que dizia aquilo porque ontem tínhamos transado, que a noite fora maravilhosa e que cumprimentava daquele jeito (muito simpático, então) todos aqueles que contribuíam para a sua saúde e felicidade sexual, eu acreditava. Embora não tivesse nenhuma lembrança de ter feito sexo com um homem. A não ser que os pesadelos não fossem pesadelos. O Ibrahim Parassé, alguém que em algum lugar existe, de mesmo, tinha tantos problemas com esses pesadelos que passou a tomar remédios pra não dormir, genéricos de anfetamina e pílulas como as que os caminhoneiros tomam, engolindo com café e coca-cola. Uma semana depois, estava tomando soníferos.
Se o Ibrahim me dissesse isso — A paz do Senhor, irmão —, eu não ia achar estranho, não, embora nunca soubesse se o Ibrahim falava a sério ou se tirava onda com a cara da gente, mas, porra, aquele cara, quem era?
— A paz do Senhor, irmão.
Era como se eu me fingisse de surdo pra sacanear o cara, mas não, eram aquelas palavras que não faziam o menor sentido pra mim. O pior é que a serenidade nos olhos dele e a firmeza da sua mão, que não saía do meu ombro, me davam a impressão muito nítida de que eu seria conduzido paternalmente ao presídio ou ao manicômio e, embora eu não entendesse nada e não soubesse de nada nesse sentido, já me conformara com o meu próprio rapto e aceitaria a validade de qualquer laudo, atestado, mandado ou ordem que esfregassem na minha cara com seus selos e carimbos.
— Desculpa. Você me conhece?
— Não. Mas você não é evangélico?
— Não.
— Pois tem toda luz.
Me senti coberto de tinta fosforescente. Tenho que parar de fingir que sou gente porque, fingindo, eu me atrapalho todo, e já que eu já ajo feito vagabundo devia também começar a me vestir como tal. Nunca sabem o que eu sou pela roupa que eu visto; me perguntam se eu sou evangélico ou — dá pra acreditar? — estudante de filosofia. Sou só um cara que não quer ser parado pela polícia porque é pardo (quanto a isso não posso fazer nada), arrasta chinela e esconde os olhos sob a pala de um boné. E olha que a garota por quem fui apaixonado de 1993 a 1995, no tempo em que as paixões duravam — Essas recordações me matam —, achava que eu ficava bem de boné.
O disco do Led Zeppelin enganchara sob a agulha do meu cérebro; a guitarra subia e descia como um mar de alfinetes e grafites e cordas de aço rebentadas.
Há muita coisa que eu não posso evitar porque ninguém pode evitar. Ainda vão me confundir com evangélicos, estudantes de filosofia e membros da casta dos comedores de cachorro, ainda vão me assaltar novamente, ainda vão querer me vender coisas até o último centavo, ainda vão me confundir com outras pessoas na rua e mais uma vez vou esperar que ninguém queira se vingar de nenhuma delas (já falei disso e não consigo evitar falar de novo: as velhas informações voltam como se fossem novas e é como se eu ouvisse o Led Zeppelin sob efeito de ácido, tocando com a ponta dos dedos a textura árida e arenosa das ranhuras que a guitarra fendia no ar) e, principalmente, sei que um dia estarei morto e que deveria bastar saber disso para beijar a boca das mulheres que eu quero beijar, mesmo que elas me detestem depois, em vez de ficar lá, tantalizado, olhando os lábios se mexerem enquanto elas falam, como invertebrados moles úmidos macios que se insinuam, se insinuam, se insinuam. Só que nem todo mundo nasceu com o talento do sr. Daud Mauara, outro cara que existe em algum lugar.
Aquele sorriso confiante, que me oferecera a glória de ser um dos seus, já tinha ido enquanto — eu olhava suas costas se afastando — a guitarra subia e descia e eu pensava na promiscuidade mórbida de cadáveres amontoados. Era só o que o mundo podia oferecer a quem não se juntasse a ele, ele pensava, e agia como se não precisasse ter medo disso e suportava heroicamente — ou como um masoquista — a mais impertinente sobriedade e o mais revoltante conformismo diante de renúncias e negativas.
Digo: cadáveres nus e despojados sob o vôo dos urubus. Os vermes saem de todos os orifícios como periscópios. O sentimentalismo das pessoas impediu que se amontoassem os corpos em lixões distantes ou… ou — ou o quê mesmo? — ou que fossem transformados em adubo e devolvidos à terra. Porque ainda existe a gratidão no mundo.
Aquele sorriso…
Renúncias e negativas…
Aquele sorriso…
Eu… via a palavra “não” em todas as lápides, cassandrianamente, e olhava pra trás, como se não pudesse acreditar que se desejasse a paz de Deus, como se preferisse uma declaração de guerra. Porque um dia todo mundo cansa de fingir. Fingir é como tencionar um músculo na brincadeira da estátua.
Essas recordações me matam…
De repente eu percebi que sabia demais sobre mim mesmo. Todos os tempos gramaticais e sentimentais de um passado não muito agradável mas convenientemente a mão se oferecia a mim como os livros já relidos de uma biblioteca que eu sabia onde estavam mesmo sem olhar pra eles. Sabia que estava prestes a chorar antes da mão no meu ombro, e que talvez chorasse mesmo no meio da rua, e justamente porque nenhum dos lábios que eu gostaria que me fizesse isso iria beber as minhas lágrimas na fonte.
Urano Porras, um sujeito de que me lembro de um modo tão convincente que a sua existência real no mundo físico me espantaria tão pouco quanto a própria existência empiricamente comprovável desse mesmo mundo físico, o que deveria ser demais pra qualquer cabeça, me disse uma vez, no tempo em que me julgava digno de ouvir suas palavras, num dia que alguém marcou no calendário e numa hora que alguém esperou marcada no relógio:
— Você deve ser o último remanescente do século XIX.
Era como se tivesse sido planejado por outra pessoa: a frase, o momento, a minha reação calada — “Olha só quem fala: toda libertinagem decadente do século XVIII me acusando de tuberculose emocional” — e a sensação de que aquilo acontecera várias vezes, como a cena repetida de um filme ou de modos diferentes em vários mundos alternativos ou mesmo em muitas épocas desse mesmo mundo. Embora eu não tivesse nenhuma lembrança de já ter morrido, não me pareceu impossível ter sofrido todo tipo de morte no abandono, e a próxima não deixaria de ser angustiante. Imaginava, pra mim, mortes terríveis de mulher e de criança em paisagens estranhas. Não me refiro às besteiras demagógicas do Kardek (eu falo mal do livro que quiser, desde que tenha lido, mas por que foi que eu li mesmo Kardek… ouvindo Led Zeppelin?) nem aos ciclos do oriente rumo à perfeição ou, melhor, rumo à nadificação: pensava em ciclos opostos, do ruim pro cada vez pior que ainda pode piorar.
De repente o Bertrand Russel fazia sentido. Eu podia ter começado a existir a partir do momento em que tocavam no meu ombro e me desejavam a paz de Deus: até então o meu corpo era um autômato, um andróide aperfeiçoado do tipo que faziam no século XVI, e naquele momento um sopro me dava a consciência. Nascido de repente e cheio de lembranças angustiosamente comprováveis, com endereços permitidos e proibidos, lugares e compromissos e pessoas e horários que me esperavam — parece que ninguém nunca é livre — e todas essas pessoas podiam pensar o que quisessem de mim sem a minha permissão. Teriam lembranças, impressões e sensações ao meu respeito onde estivessem. Ou não. Não é estranho? Você sabe que as pessoas com quem conversou, com quem foi pra cama — ontem mesmo eu vi um fantasma —, com quem brigou, com quem riu, que odiou em silêncio de longe ou de perto continuam existindo mesmo fora do alcance dos seus olhos e você até pensa nelas. Meu nome e meu rosto existiam ou existiram em várias cabeças e diante de vários olhos e associáveis a impressões digitais e numerações de RG, CPF, título de eleitos, carteira de trabalho, de estudante, de reservista (lembrança daquele dia por que todos passaram: jurar fidelidade à bandeira nacional sob o pior meio-dia e com uma gravação mofada do hino, mas a verdadeira música é a guitarra do Led Zeppelin diante de um sorriso cínico de caveira), certidões, atestados etc., etc., e esse mesmo rosto & nome, à minha revelia, já teria ido tão longe que ouvi dizer (mas assim como você não vai acreditar eu não acreditei) que uma guerrilheira das FARC tinha se apaixonado por mim. Hoje, com a correspondência rompida, ela deve achar que todos os homens são iguais e eu perdi mais uma chance de aprender a atirar e a me virar na selva. Tudo isso e mais pode ter sido previsto e calculado sob a lógica da análise combinatório e da estatística: um mundo possível que pode caber, com todos os possíveis, sobrando espaço, na palma da mão que se encheu com meu ombro — A paz do Senhor, irmão — enquanto o Led Zeppelin rachava o meu crânio e na minha imaginação o olho de vidro se aproximava vertiginosamente do meu rosto espantado, mostrando que o ponto de vista alheio que eu admirava com superioridade e em segurança na verdade era mesmo meu: eu tinha tudo a perder.
Isso até que eu acorde, repentino, em outro mundo, andando, com medo, entre garras e caninos ocultos, em noites que fingem dormir, cheias dos olhos abertos de gatos raivosos. Nunca terei mesmo nada a temer, a não ser que o LEd Zeppelin nunca pare de tocar.
A idéia do Bertrand Russell parece absurda? Ora, qualquer um que acho o Wittgenstein um cara legal tem que ser mesmo meio maluco.

[airton uchoa neto]