segunda-feira, 27 de outubro de 2008

LANÇAMENTO DE LIVRO I & II





Série de crônicas de Raymundo Netto para o jornal O Povo sobre fenômenos da literatura cearense bem conhecidos nossos, e, creio, de outros moradores de província


I.


A sina incansável dos autores cearenses desconhecidos (quase todos os são) na ávida busca de seu público leitor para o lançamento de suas obras.

Quando o autor e/ou sua obra são bastante aplaudidos pela crítica e público, das duas, uma: ou eles são muito bons ou são, realmente, muito ruins!

Esse paradoxo que, à primeira vista, parece não significar coisa alguma, também transita em outras linguagens artísticas ou mesmo em outros aspectos menos importantes da vida, como a política, por exemplo.

Não está entendendo? Pois veja só pelo que passei dia desses:

Um desconhecido autor cearense, quase todos os são, ligou para convidar-me para o lançamento de seu livro. Disse ter sabido o número de meu telefone por meio de um “colega”... Assim como aquele outro autor — não menos cearense; não mais conhecido — que contou ter convidado Deus e o mundo para um de seus lançamentos (dizem que faz lançamentos até em paradas de ônibus e banquinhas de feira), e destes, só Deus comparecera, também esse jovem relatou que num primeiro lançamento desse mesmo livro não havia aparecido ninguém. “Ninguém”, achei, era modo de dizer...

O certo é que divulguei o tal lançamento. Era de um romance de título pouco literário, premiado. A capa mais parecia de guia de turismo e nela se lia: “romance indígena”.

Embora com outras e diversas atribuições, prometo, cumpro: fui a tal evento.

Chegando lá, encontrei um jovem de pouca altura por trás de uma mesinha. Perguntei se era o autor. Confirmou-me e retornou:

— E você, quem é?

— Sou o Raymundo Netto.

— Então acho que só vem você! — sentenciou, numa conformação de dar gosto.

O lançamento estava marcado às 19h. Demos, pela ignorância de coisa melhor a fazer em lançamentos de livros, a conversar miolo de pote. Ele falava muito, mostrava-me, espalhados em fila sobre a mesa, os livros de um outro autor que dera, naquela tarde ainda, a certeza da presença e que ele aguardava ansioso para vê-lo autografar suas páginas... Ainda bem, pensei, que por ali não faltavam cadeiras para o rapaz esperá-lo... até hoje!

Confirmou que aos 16 anos “encontrou inclinação à faina poética” e dez anos depois, “romancista, poeta lírico, compositor, teatrólogo, dramaturgo, contista e escritor”, vivia da venda de seus livros — tinha mais de seis títulos, dentre eles, alguns traduzidos para o inglês e francês, garantiu. Lembrei outra figurinha que afirma ser o autor mais “não-publicado” do Ceará...

Em seu livro, assinava as orelhas, o preâmbulo, o posfácio (o prefácio foi o editor) e a extensa sinopse da quarta capa (que tem como fundo a bandeira do Brasil), além de oferecer um glossário, apenso histórico e um roteiro de leitura (lembra daquelas fichas de leitura do tempo de colégio? Voltaram!)

Disse-me não ler livro de ninguém. Autor cearense? Nem pensar! (abria exceção para o Alencarzão) Escrevia e pronto!

Falou-me do “sonho” de entrar para a Academia Cearense de Letras e que “iria labutar, incessantemente, para isso” (angustiei-me). Detalhe: há poucos meses, soube, “adentrou” (acho que ele prefere essa forma) os umbrais de uma das 999 academias de letras existentes no Ceará.

Em meio ao “convescote”, e com todo o jeito, tentei convencê-lo de que aquilo não era romance indígena, pois o autor (ele) não era índio. No máximo, indianista. Ele sorriu paciente e simplificou: todos éramos índios.

— Tudo bem, mas se tentar explicar isso para os índios é capaz de eles se ofenderem... — alertei.

Criticou-me quando soube que eu distribuía livros — “doidice” — e pôs-se a me dar conselhos e orientações. Foi quando, finalmente, perto das 21h, uma funcionária da livraria, muito delicadamente, dirigindo-se a ele, perguntou se achava vir mais alguém — estavam precisando do espaço — e se poderiam servir o coquetel. Ele olhou para mim e lançou: “Pode?” “Sim, claro, acho que é boa a hora!”

Uma mocinha sorridente, então, trouxe-nos duas bandejas circulares grandes com salgados de toda a espécie e vinte e quatro copos de refrigerante. Sentamos os dois numa pequena mesa da livraria, e diante da farta oferta, pus-me a dividi-la com alguns clientes. Uma das, nos disse: Ah, hoje tem lanche por aqui? Está melhorando...

Ao despedir-me, porém, o “neófito” deu-me umas tapinhas nas costas, torceu o canto da boca num sorriso de consolo, e pude perceber que, mesmo diante do imenso vazio de sua solidão, ele ainda conseguia forças para sentir pena de mim.


II.


O escritor Raymundo Netto volta a abordar os caminhos de um escritor às voltas com as gráficas e o lançamento do livro

Nos dias atuais, concordemos, é muito fácil se publicar um livro; não publicá-lo, porém, diante do apelo irresistível da vaidade, é que é difícil. Estava até pensando na possibilidade de não publicar essa crônica... mas fracassei!

Quando o indivíduo, certo de “querer ser” escritor, — aliás, escritor já é “ex” até pelo próprio nome — decide mostrar sua obra a um editor, descobre que no Ceará não se tem disso não. Dá até para se concluir: editora não é bom negócio, caso contrário, os americanos já estariam por cá.

No entanto, quando o escritor consegue juntar uma michariazinha, ou a pede emprestada ao emergente cunhado, a fundo perdido, é claro, acaba se entregando nas mãos de donos de gráficas (com nomes de editora) que batem-lhe às costas e cobram-no o serviço em troca de um “iessebeênizinho” de nada, o que para ele, o sujeito mais solitário e incompreendido do mundo, é motivo de lavar-se em lágrimas. O pior: mal o livro entra no prelo, o desgraçado passa a sonhar com a cerimônia de outorga do famoso e bronzeado quelônio, tão feinho, coitado, que não seria de todo ruim se o deixassem a segurar portas, ao invés das frágeis tartaruguinhas (suas primas) de areia.

Eu mesmo, antes de publicar meu primeiro livro, passei por vários editores, só recebendo, de certo, unânimes parabéns, parabéns, parabéns... Aliás, eles são mestres na técnica de desaparecer após tais parabéns. Conselho: quando for a sua vez, agarre bem a mão de seu editor, senão ele some!

É, vida de escritor não é fácil, mas é criativa. Conheci um que, como muitos, enviava o produto de sua lavra para escritores renomados, aguardando ansioso seus pareceres. Estes, respondiam — pressupomos que deviam ler, mesmo fosse como Jorge Amado (não li, mas já gostei) — por e-mails ou em breves cartas que o autor fotocopiava e distribuía orgulhoso entre amigos e desconhecidos em mesas de bar. Numa dessas, conferi a assinatura de um: “Dr. Scliar”. Ah, e por falar em fotocopiar, outro dia um escritor veterano afirmou que ninguém sabia, mas ele seria o autor cearense mais lido em Pindamonhangaba, via xérox!

Acontece de tudo um pouco por aqui. Outro autor, por exemplo, revoltou-se com o livro “de papel”, fez uma fogueira no fundo do quintal e decidiu publicar somente em blogues. Depois disso, orgulha-se, embora agora tenha mais de 200.000 não-leitores habituais. Tem aquele outro que, após sucessivos insucessos (que construção engraçada!), converteu-se em Jesus e chegou à conclusão de que literatura é coisa do cão, ou mesmo o caso do rapazinho de boca suja que se diz poeta autodidata pós-modernista, pioneiro no Ceará da reforma ortográfica, trocando “j” por “g”, “s” por “z”, dentre outros involuntários barbarismos que ele denomina “rupturas”.

A mais trágica história de autor e editora, entretanto, aconteceu ano passado:

Um poeta, angustiado por não exercer sua arte como ofício, abandonou o chapéu panamá, deixou de vender livros artesanais para turistas do Dragão do Mar e decidiu procurar um editor que publicasse o seu livro (soberbamente recheado de rimas melosas: lua com tua, coração com paixão e solidão, amar com cantar e tererê e tarará). Estava irredutível, disposto inclusive a lançá-lo em local privilegiado cujo apresentador sorridente, apesar de ler muito pouco, não poupa o público de suas súbitas intervenções, antecedendo-as sempre com “eu não sou crítico literário, mas...” e lascando a rouquenta bobagem da noite. Enfim, voltando ao assunto, certo dia, nosso autor marcou hora e reuniu-se com um editor que, mesmo diante de apaixonadas proposições estéticas, rompeu o silêncio e disse-lhe, na lata: “Lamento, não publicamos autores vivos!”

Machucado brutalmente, o poetinha arrastou o caminho de casa. Lá chegando, no centro do quarto vazio e sujo, refletiu: “A Poesia é minha vida!” Assim, retornou à editora, numa inquietação dos diabos, invadindo-lhe o gabinete, e, diante do assombrado editor, revelou, dos coses da calça, a lâmina brilhante. Anunciou:

— Antes a vida pela poesia, que a morte pelo silêncio em agonia!

Dito isso, rasgou, em meio ao pranto soluçante, o pulso magro de escrevente. Encharcado em sangue e lágrimas, antevendo os prováveis estertores finais, lançou-se ainda sobre a mesa editorial, espalhando pelos cantos, as canetas e chaveirinhos:

— E agora, senhor editor, morto estando, que motivo haveria para não me publicar?

O editor, reposta na calça a fralda da camisa, arqueou as sobrancelhas:

— De fato, você cumpriu o primeiro requisito. Agora, pegue os formulários com a secretária, traga os originais encadernados em seis vias com firma reconhecida em cartório, pague uma taxa simbólica e aguarde o telefonema... Ah, e parabéns.


[Raymundo Netto]

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

a new novel (work in progress) my freak show book



APOCALÍPTICOS ETERNOS


“Brasília. Ninguém pensa em Brasília fora de suas asas; ninguém pensa em Brasília fora do cinturão de mil sotaques de suas cidades satélite. O slogan principal da secretaria de turismo daqui devia ser: VENHA MORRER EM BRASÍLIA, porque só esse seria sincero e verdadeiro, só esse teria um significado. Brasília, com a sua planitude infernal, parece confirmar a percepção medieval de que o mundo é chão. O sr. Lúcio Costa projetou o pesadelo ideal do progresso: uma cidade protegida contra vida erguida no meio do ar seco, como se o serrado não parasse de arder suas temporadas de incêndio; o sr. Niemeyer perverteu as curvas, petrificou a carne, sexualizou o metal, e quem vive aqui vive (?) cercado pela dureza camuflada de uma geometria absurda, feita para leis da física que esperam para ser votadas, sem que haja interesse nisso. Em Brasília minha consciência política era tão superficial quanto a do Cazuza e a do Renato Russo, mas eu não saí por aí gritando meu descontentamento porque o meu egoísmo já tinha evoluído para uma nova fase. Meu estoque de drogas ilícitas também é financeiramente limitado. Estou cansado de receber panfletos de ufólogos fundamentalistas: exigem leis que regulamentem a abdução como categoria involuntária de turismo. Me lembra Uberaba, onde li aqueles romances espíritas psicografados, autonecrografias, e concluí que, pra entrar no céu, meu filho, o sujeito tem que escrever mal e não pode ter idéias originais. Cheguei em Brasília mesmo em 2010: fora expulso a tiros de Campo Grande, mas, eu juro, não tem a menor condição de eu ser o pai do garoto. Recém chegado, já publiquei alguns artigos em jornais alternativos sobre a emancipação das maiores potências intelectuais da nação, os macacos raivosos: precisavam ter o direito de se candidatar a cargos públicos. O presidente me chamou para uma conversa e eu, naturalmente, não fui. A primeira coisa que pensei foi: “Porra, o que é que o presidente está fazendo nessa cidade?” Recebi um telegrama: o Excelentíssimo me oferecia um ministério pendente — sua última cartada: o Ministério das Causas Impossíveis, com o quadro de santo Expedito em cada escritório, pisando sua gralha azarada, mas eu não podia aceitar: era devoto de Joana Darc, até perceber que isso não fazia o menor sentido — porque queria aproveitar a minha inteligência numa outra direção antes que a oposição tentasse o mesmo e me fizesse propostas (sabe como é: mantenha os amigos perto e os inimigos mais perto ainda). Também quis me dar uma medalha nem ele mesmo sabia por que, e eu mandei, por escrito, uma resposta bem cordial e dentro dos protocolos da clareza: ‘Cara, o lance é o seguinte: não sou muito de homenagens, não. Termina aí o mandado e a gente toma um trago, mas não aqui: em Palmas. O senhor paga: sabe como é: nunca fui presidente’. Palmas era mesmo o meu próximo passo, mas o cara, que curtia os últimos meses na presidência, nunca me respondeu, nem do próprio punho nem por assessores. Continuei recebendo cartões nas datas comemorativas com o Juscelino de bronze acenando e sorrindo o seu sorriso com seus dentes pretos de bronze e o brasão da república cravado no metal do céu azul. Os cartões devem estar se acumulando no apartamento abandonado. As minhas janelas já tinham vidros demais estilhaçados por pedras jogadas da rua e eu comecei a me preocupar. Devido a ameaças dos macacos raivosos — anarquistas radicais e coerentes que não queriam saber de política partidária nem brincando — tive que antecipar minha ida a Palmas.”

Essa foi a primeira e última mensagem escrita que o Ibrahim me mandou. Ele atravessou as rodovias estaduais com suas margens coalhadas de cadáveres de mulher e as rodovias federais rumo à liberdade e, no seu caminho, encontrou cidades muito boas pra ser infeliz. Quinze anos depois, ele estava de volta, eu ainda não sabia se só de passagem ou pra ficar.

Assim que chegou aqui ele me ligou. Achei estranho porque só os meus contratadores anônimos entravam em contato comigo: eu tinha um daqueles novos telefones especiais sem número que só recebem ligações de telefones escolhidos previamente. Eu entregava as encomendas que me faziam — estudos sobre assuntos esdrúxulos como o pH da urina das tijubinas e o hábito sexual dos insetos noturnos — em depósitos de lixo e ia buscar o pagamento em sacos deixados em lixos 100m distantes do ponto de entrega. Já tentei pegar o dinheiro sem entregar nada, mas o dinheiro não está lá antes de eu fazer a minha parte. Também fiquei de tocaia pra ver quem deixava o dinheiro, mas ninguém apareceu. Isso confirmou a desconfiança de que nas datas de entrega, e talvez a cada segundo, eu estava sendo vigiado, mas desencanei logo e voltei a receber o dinheiro sem maiores problemas. O foda era que eu tinha que me apressar sempre: os horários que eles marcavam eram sempre próximos aos da coleta e, enquanto eu corria pra lixeira de cem metros adiante pra chegar antes do caminhão, uma sombra furtiva se encarregava da minha entrega quando eu já estava longe o bastante.

Quando o Ibrahim me ligou eu tinha acabado de receber. Distribuíra o dinheiro nos bolsos e me livrara do saco plástico contaminado com o odor adocicado de frutas podres. Achei estranho que já estivessem me fazendo uma encomenda nova.

— Airton?

— Sim.

— Sou eu, o Ibrahim.

— Ibrahim?

— Ibrahim Parassés.

Sim: o sotaque de Recife e a voz segura eram bem familiares. Agora, mais velho, ele falava com a tranqüilidade e a serenidade do Mahatma Gandhi: era mesmo genético.

— Ibrahim? Desde quanto você trabalha no Instituto?

Era o único modo de poder me ligar.

— Instituto?

Eu sempre assusto os velhos amigos: eles já me conheceram grilado e paranóico, mas não imaginam como a coisa piorou, desde que fui testemunha principal daqueles atentados ecoterroristas e tive que passar horas dando depoimentos pra polícia federal e entrevistas atropeladas. Do outro lado das portas eu sempre encontrava uma multidão de braços estendidos com microfones, gravadores e telefones. Os aparelhos pareciam extensões transmissoras e captadoras dos corpos informantes. Ninguém me concedia o direito de ficar calado.

— Como conseguiu meu telefone?

— Um amigo seu me conseguiu. Achei um pouco estranho. Me abordou já com a certeza de que a gente se conhecia. M as eu conheci uns descendentes de índio, em Cuiabá, que agiam desse mesmo jeito.

— Com’é qu’ele era?

— Vestia paletó vermelho, usava correntes de ouro e óculos escuros. Que nem os descendentes de índios do Cuiabá. Vivem de tocar guarânia.

— Sei quem é, sei quem é.

Nunca tinha visto ninguém assim: eu me lembraria. Com certeza o ka interceptara o meu confrade e dera um jeito de tornar meu telefone abertamente acessível através de uma combinação numérica arbitrária. Era bom encontrar o Ibrahim depois de tanto tempo. Ele é o tipo de cara que se move em alta velocidade e se comunica em alta freqüência: não importa quantos anos se passe sem conversar com ele a gente sempre tem assunto na volta: Deus o abençoe. Mas o instituto Pangloss ia exigir que eu trocasse o aparelho. Talvez mudassem até de tecnologia, pra evitar novos furos, mas, quando se trata de um ka, e eles já deviam ter sacado isso, nada está imune por muito tempo.

Marquei de encontrar o Ibrahim numa dessas novas praças que construíram, em homenagem a não me lembro que humorista travestido. Têm fama de agradáveis, essas praças novas, mas eu, cada vez mais ranzinza e ultrapassado, evito os lugares recentes: são iguais demais entre si e seu modelo centro-europeu e diferentes demais dos antigos.

Eu não sei se o que ele queria era me sacanear, porque foi ali que eu testemunhei o atentado da galera do Green War (dissidentes radicais de um velho grupo de ativistas pacíficos, hoje fora de atividade) num dia em que não pude evitar pisar lá — eu que já evito ao máximo botar os pés fora de casa —, mas acho que foi por acaso: a notícia circulou por pouco tempo e o meu rosto pressionado só apareceu na televisão por poucos segundos: curiosamente os editores das emissoras escolheram as mesmas frases redundantes e tortas que eu disse sem pensar direito. Espero que ele não tenha sabido do episódio ou que tenha esquecido: pressionado por informadores apressados e seus aparelhos captadores e registradores, muito dificilmente o cara não diz coisas idiotas com cara de idiota.

Encontrei ele a caminho, sabe, na rua Maria Luíza Fontenele. O encontro tinha sido marcado na esquina daquela mesma rua com a Rosa da Fonseca.

— Quando foi que puseram o nome delas nas ruas?

— Quando elas pararam de encher o saco.

Porque são principalmente as melhores das boas intenções as que mais incomodam, como moscas varejeiras tentando lamber a umidade do seu olho, embora em mim não fizessem nem cócegas. Quem é que ouvia elas quando elas falavam mesmo? Pois é: um dia todo mundo se cansa de defender o que é nobre assim como se cansa de tencionar um músculo. As velhas defendiam o anarquismo, o voto nulo e o caralho, com argumentos muito inteligentes, tipo os do Robert Kurz — Apesar de consumir a maior parte do tempo diário, a maioria esmagadora dos que laboram não sente o tempo de trabalho como tempo de vida próprio, mas como tempo morto e vazio, arrebatado à vida como num pesadelo —, mas se as pessoas merecem ser livres e felizes num não-regime de igualdade total, sem culpados, onde qualquer forma de opressão fosse impossibilitada pela ausência de quem compactuasse, eu não sei. A quantidade e a qualidade das pessoas que paravam pra ouvir elas falando (universitários com a vida ganha e idealistas aposentados que passaram a tocha) mostra como era patética e comovente a situação romântica daquelas nobres senhoras, crentes numa melhor humanidade. Reconheço mesmo que se trata de um mundo em algum momento da vida sinceramente desejável — pra quase todo mundo não mais que uma noite insone depois de uma decepção —, mas tão bom que nenhum de nós conseguiria viver nele por mais de alguns dias sem sair por aí procurando uma saída ou corrompendo tudo ou chorando pela guarda paternal e sonhando com algum canalha ideológico que se habilitasse a liderar, e mesmo elas iam ficar bem entediadas, não tendo mais o que pregar num mundo perfeito e todo semelhante a si mesmo. Não importa o que as pessoas dizem quando lhes perguntam se querem ser livres ou se preferem a ver4dade à mentira e, repito, não acredite no que disserem nesse sentido: o direito de que ninguém abre mão é o direito constitucional de ser porco. Deus seja louvado.

Mas a História é engraçada e cínica, e é mesmo feita pelos vencedores. E nós andávamos na rua Maria Luíza Fontenele a caminho da esquina com a Rosa da Fonseca.

— Me disseram que lá vendem o melhor pastel da cidade.

— Mentira. O ambiente lá é todo de acordo com as regras ditatoriais da vigilância sanitária. E você sabe que não se faz um pastel que preste sem óleo saturado.

— Possa crer.

Todo mundo que vem de fora diz que é fácil a gente se localizar em Fortaleza, mas eu mesmo, que nunca passei mais de 72 horas longe daqui e nunca nem mesmo saí do estado, nem de brincadeira, sempre tive problemas pra me situar: os lugares parece que se repetem, e uma esquina do velho Grande Pirambu você jura que viu igual na Messejana ou no bairro do Aeroporto dez anos depois. Todo lugar têm suas vilas abandonadas e portas e janelas lacradas, tijolos nus como cicatrizes mal fechadas, e as contas vencidas com juros, os protestos e os anúncios se acumulando nas pequenas varandas selvagens, terrenos baldios ocultando vigilantes dormentes e espaços vazios cercados de fios elétricos partido, canos quebrados e marcas arenosas das vigas ausentes, como se da noite pro dia um gigante tivesse arrancado a casa que havia ali.

Eu mesmo não me locomovia com muita facilidade porque andava debilitado. Como minha mãe não gostava que eu fumasse eu tinha que sair de casa pra fumar, lá pelos anos 1990-2000, e parei de fumar de madrugada, porque lá em casa reclamavam do cheiro de cigarro que ficava no banheiro até quando eu não fumava. Desde que pude tomar vergonha na cara e morar sozinho, numa autentica maloca de Adoniran Barbosa, “lar, doce lar”, tenho acendido o primeiro cigarro do dia ao acordar e apagado o último antes de dormir, com duas carteiras entre um e outro. Os cigarros também ficaram mais fortes desde que deixaram de ser contrabandeados do Paraguai e do Peru e passaram a ser trazidos ilegalmente da Colômbia e da Bolívia, através do que sobrou da floresta (os narcotraficantes, que precisam de privacidade, no final se mostraram os mais aguerridos defensores da preservação da Amazônia). Era um paranóico ranzinza e um fumante inveterado, cheio de piadas estranhas e fora de hora que faziam os outros olhar pra ele como se de repente se dessem conta de que estão ao lado de um doido, que o Ibrahim ia encontrar.

— Sabe, velho, tirando a calvície, você não mudou nada.

O pior era que o meu cabelo tinha caído assimetricamente: perdi mais cabelo do lado direito do que do esquerdo. Parecia que eu tinha perdido o cabelo por causa de uma queimadura ou de uma cirurgia cerebral ou que tinha fugido de um reformatório.

Chegamos na pastelaria. A pastelaria tinha o nome do humorista travestido homenageado pela praça, naturalmente. Havia nas paredes retratos de um homem alto e desengonçado, maquiado como uma mulher insana e com os seios e as nádegas de um travesti mal planejado.

— Você já foi visitar o dr. Porras?

— Quis, mas ele ficou poderoso demais, tá ligado? Tenho que passar por muita gente uniformizada e preencher muitos formulários, assinar termos de responsabilidade pra falar com ele. Ouvi dizer que com as mulheres a burocracia é menor, mas o cara obriga elas a fazerem exames de sangue e coletas de fluido vaginal e não fala com elas antes de o laboratório liberar o resultado dos exames.

— É. Ele não brinca em serviço. Em casa de malandro vagabundo não pede emprego mesmo.

— Todo ano eu recebo cartões de natal dele. Esse foi o último.

Eu estava na lista de ingratos do dr. Porras — aliás meu nome era o mais antigo e estava no topo da primeira página —, naturalmente nunca recebi um dos seus famosos cartões de natal, mas sabia do que se tratava: eram fotografias em que ele aparecia, sorrindo, enrabando a sua gata da vez. Eram sempre celebridades inacessíveis da música, do cinema, do esporte, das passarelas, da política, o diabo. Depois das fotos divulgadas, cada uma das divas cromadas da ocasião caía em desgraça vertiginosa e conseguia, no máximo, uma ponta em algum programa humorístico da televisão, desses exaustivamente pensados pra não ter graça nenhuma, porque alguém da produção teve pena ou aproveitou os sobejos do dr. Porras. Ninguém é de ferro.

— Como ele sabia o seu endereço?

— No ramo dele ele tem que saber o endereço de todo mundo.

Havia uma igreja católica no centro da praça e era um domingo. Ficamos na pastelaria, esperando nosso pastel de sardinha no molho de tomate e curtindo o movimento. Eu já tinha ido àquela igreja de metal e vidro, porque gosto de ver como cada igreja tortura o seu Cristo. O dali era magro, esguio, nervoso e dramático como os retirantes do Portinari. O bronze em que o mumificaram tornara ainda mais doloroso aquele martírio eternamente revivido.

Continuamos ali, falando de coisas mortas e de coisas vivas. Era só quando o Ibrahim tentava tornar as novas tecnologias mais atraentes que eu ficava entediado. Nesse ponto eu penso como o Hobbes: ainda não surgiu nada que tenha realmente superado o alfabeto.

As mulheres continuavam abusando do corpo, do coração e da inteligência do Ibrahim. Felizmente ele não perdeu sua ginga de cantor de soul e sua percepção realista dos fatos revezada com sonhos estratosféricos até a náusea. Estava no quarto casamento. Ele se lembrou de quando estava conversando com a garota e eu apareci, vindo do banheiro, segurando as calças pra não cair.

— Lendário, velho, lendário. Vou mentir não: estragou o lance, mas foi lindo.

Eu nunca desencano: vexames passados na infância ainda me fazem corar. Imagine esse. Ele ria, e eu ainda queria pedir desculpas a todo mundo porque existia: essas minhas características atávicas de macho β acabam comigo.

Era sobre isso que a gente conversava, malgrado meu, quando as pessoas começaram a sair da igreja correndo, atropelando mendigos, cachorros e pipoqueiros. O pastel de sardinha no molho de tomate não vinha e, como ainda não tinha chegado, a gente ainda não devia nada à casa. Então fomos ver de perto que putaria era aquela. Acabamos nos separando, desencontrados, misturados a uma multidão que não sabia se ia, se vinha ou se voltava. Eu tomava o sentido contrário, rumo ao centro do furacão. Até que numa porta lateral eu dei de cara com um sujeito com uma .44. negra lustrosa e de cano longo na mão, como um pêndulo. Quando me viu fez cara de quem tinha encontrado alguma coisa de repente. Fiz cara de foi-engano, pedi licença, entrei na igreja sentindo o gume dos seus olhos nas minhas coisas, caminhei até a porta do outro lado e dei de cara com ele de novo, como nos desenhos animados, mas ele parecia esbaforido por ter corrido pra me alcançar. Pedi licença de novo — muito constrangido pelo óbvio engano, mas pensando: “Porra, que cara chato!” — e encontrei a multidão. Contornei a igreja de volta até a pastelaria e encontrei o Ibrahim na calçada, à minha espera. O dono da pastelaria e seus funcionários queriam fechar, mas as velhas carolas (carregavam uma imagem do menino Jesus de Praga roubada de igreja, na confusão) queriam encontrar a segurança lá dentro. Entramos na pastelaria e ajudamos o sujeito a baixar as folhas de metal. Quase imprensamos os dedos das velhas obstinadas e, do lado de dentro, ficamos ouvindo pontas de guarda-sol batendo na porta, como pingos grossos de chuva no telhado.

Antes de fechar, porém, vi, sentada no chão da praça, uma velha senhora brancosa e gorda como um porco bem banhado, cobrindo os olhos sangrados com as mãos. Perdera os globos oculares a golpes de ponta de guarda-sol no meio da confusão. Em linguagem bélica isso se chama ser vítima de fogo amigo.

Sentamos na mesa. A mesma mesa.

— O que é que vocês querem aqui?

— Nossos pastéis.

Os caras se olharam. Não custava nada: a gente ia pagar.

Resolveram nos servir. A confusão nos tornou clientes quase exclusivos, mas aí a gente notou que havia um terceiro elemento: vestia paletó vermelho, usava correntes e óculos escuros.

— Olha só. Achei que nunca mais ia ver você.

— Tá brincano? Adoro o pastel daqui.

Trazia um livro amarelo com ele. Nunca tinha visto ele com livros. Embora isso não me espantasse porque nele nada me espantava.

— Lendo Raduan Nassar?

— Tenho algum tempo sobrando.

— Que tal?

— Um dos maiores escritores brasileiros do século XIX. Me recomendaram Hilda Hist. Que me diz?

— Uma vez eu usei um livro dela como apoio, pra dar uma cheirada. Pelo menos uma vez o livro dela serviu pra alguma coisa.

Ibrahim reconheceu o cara e nos sentamos os três, amistosamente, esperando nossos pastéis de sardinha no molho de tomate. Os ka são malandros, mas também são gente fina: são vêm com malandragem pra escapar de ameaças. Sua presença ali, como sempre, foi muito providencial: somente ele podia explicar o que estava acontecendo ali, porque eu mesmo não tinha entendido nada.

— Vai dizer que não sabe de quem se trata? Aquele com o revólver na mão é o Noriega Acyoli.

Comecei a tremer e a gaguejar. Até o Ibrahim ficou preocupado. Não tive medo porque ele estivesse armado; isso eu já tinha visto. Temi pelo que ele representava: era a única pessoa no mundo que eu admirava e evitava a todo custo. Imagine que você está aprendendo uns acordes de violão na calçada e erra o tempo todo. Aí, quando você já está puto e prestes a quebrar o violão a golpes de rock’n’rol, passo o João Gilberto e cumprimenta você… Era uma coisa assim que eu sentia com a presença do Noriega Acyoli. Noriega Acyoli não era o seu nome real, naturalmente, mas ninguém sabia como ele se chamava de mesmo nem de onde vinha. Eu já fizera alguma coisa parecida; trabalhara sob encomendas sinistras usando um pseudônimo da insular, mas nem se comparava, meu chapa.

O Ibrahim ainda não tinha sacado.

— Noriega Acyoli?

O ka lhe explicou.

— Assassino profissional e escritor vanguardista de best-sellers. Lhe encomendam o assassinato. Ele executa sem nem querer saber a razão. Profissional. E, depois, transforma o crime em experiência literária e some. Escreve em inglês, francês, espanhol e português. Atua em todo continente americano, do Alasca às Malvinas, e escreve seus relatos sempre na variante lingüística do cenário de suas narrativas. É como se tivesse nascido em todos os lugares. É engraçado. Assassinos profissionais aproveitam o lucro pra levar vida mansa, enchendo a cara e pagando mulheres em cidades perdidas nas beiras do Pantanal e da Amazônia, até que surja um outro serviçinho de limpeza, mas esse perde o tempo escrevendo livros.

— Ele não seria um ka? — perguntei ironicamente.

— Não. Os ka não são bonitos nem precisam usar disfarces e cirurgias plásticas quando querem sumir. Você devia sacar do Noriega. Escreveu um artigo sobre ele quase vinte anos antes de ele aparecer em ação.

O artigo fora publicado numa revista eletrônica do próprio Ibrahim, nos bons tempos. O Ibrahim mesmo estava mais por fora do que rola de índio. Eu me lembrava mais ou menos de ter escrito aquele artigo e de ter dado um título a ele. Num certo trecho chego mesmo a dizer: (…). Defendia a idéia de que só os criminosos verdadeiros, adorados secretamente, seriam escritores possíveis da década de 2010 em diante e lamentava que meus sonhos não pudessem se realizar. Agora que o meu sonho se realizava — como eu previra, as mulheres caíam pelo Noriega, que, segundo os boatos, era um sujeito altamente atormentado, mas na verdade o que fomentava essa ilusão eram os artigos semanais de Madame Nefertiti que saiam no jornal e se dedicavam a descobrir, psicologicamente, quem era Noriega Acyoli: as mulheres são engraçadas, sempre têm preferência por sofredores egocêntricos que detém algum poder —, agora que a coisa estava acontecendo nem eu mesmo conseguia acreditar e começava a tremer.

— Ninguém devia brincar com o futuro.

Nunca duvide de um ka quando ele fala sobre o tempo.

E era claro que ele tinha razão. Sem dúvida. Aquele era o método de ação do Noriega Acyoli: caçava sua vítima na multidão dispersa, como os leões faziam com as manadas estouradas das zebras, no tempo em que havia leões e zebras.

— Até hoje ele nunca falhou.

— Eu sei, mas quem é a vítima?

— Vamos saber quando ele completar o serviço.

Comemos nossos pastéis com refrigerante de jaca. Terminamos, pagamos e, como a chuva de pontas de guarda-sol não parava — as velhas eram mais tenazes do que eu podia imaginar —, perguntamos se havia saída pelos fundos.

— Muito bom. Meu carro ficou estacionado lá.

— Por que estacionou o carro lá. T’encontrei andano na rua.

— Sempre faço isso. Estaciono o carro em qualquer lugar e começo a circular por aí a pé mesmo.

O Ibrahim de sempre…

Era um conversível amarelo, baixo, com placa do tempo em que as placas eram amarelas, tinham apenas duas letras e quatro números de identificação. E o carro, porra, era todo original. Fosse que modelo fosse aquele: macho β: entendo nada de carro. Foram os saudosistas que pressionaram pra ter o direito de ter carros registrados à antiga, mas não devia haver mais de dez daquele circulando por aí. Francamente eu nem queria saber onde estavam os outros nove: queria mas era entrar e que o Ibrahim disparasse.

Porque o Noriega Acyoli apareceu na esquina; estava olhando pra mim. Os caras olharam pra mim também e até eu olhei pra trás pra saber se havia mais alguém, mas não, era eu mesmo.

Entramos no carro e o Ibrahim disparou. Senti a arrancada nos ossos e no estômago cheio de pastel de sardinha no molho de tomate.

— Ele não vai atirar. E, se atirar, vai ser com a certeza de acertar só o alvo. Que parece que é o Airton.

— Tá dizeno isso pra me tranqüilizar?

— Não. Pra tranqüilizar o Ibrahim. Ele tá no volante, né?

Noriega Acyoli — quanta honra — estava atrás de mim.

— Por que eu?

— Sei não. Por que?

— Eu não sei porque ele veio atrás de mim. É por isso que eu perguntei.

— O Instituto… talvez.

— O instituto?

Até o Ibrahim perdeu a pose de concentrado.

— O Instituto?

O Ibrahim parecia que não sabia do que se tratava. Lhe explicamos confusamente o Instituto e a entidade dos ka e os magnetizadores russos e os para-normais americanos e o caralho. O Ibrahim se lembrou: por causa das suas teorias sobre macacos raivosos o Instituto procurou ele em Brasília, mas o Ibrahim, malandro, se apresentou voluntariamente e a galera do Instituto, diante da cara de amélia que o Ibrahim sabe fazer nos melhores momentos, perdeu todo o interesse nele.

Aí uma blitz nos parou. Já era noite, mas as luzes dos postes estavam estrategicamente apagadas. Um tira mascarado saiu do outro lado da barreira e veio bater nos vidros. Tinha o rosto coberto por uma máscara de lã e usava óculos de visão noturna. Parecia até um animal mais perspicaz que o ser humano.

— Estamos procurando o senhor.

Era comigo que ele estava falando. E com tanta certeza que nem perguntou como me chamava.

— Que foi qu’eu fiz?

— Falou mal das patronas das ruas Rosa da Fonseca e Maria Luíza Fontenele.

— Porra! M’esqueci que tem microfone nos postes.

Saí do carro sob os olhos impotentes do Ibrahim. O ka estava tranqüilo como eu: tudo foi muito providencial.

— Apesar de tudo, você pode contar com o Instituto, às vezes.

— É. Valeu, Ibrahim. Foi bom te ver.

— Falou, parceiro. Te cuida aí.

O Ibrahim se despedia de muitos amigos desse jeito: vinha a polícia e levava eles embora.

As luzes se acenderam de repente. A barreira foi retirada e Ibrahim seguiu o caminho.

Fui posto no camburão com dois ladrões descamisados, amigos de infância que não me reconheceram e me olharam com cara feia. Eu nem ligava: ia passar pelo menos uma noite tranqüila.

E o Noriega ia me caçar numa cidade vazia.

[airton uchoa neto]

através ii


através i


domingo, 12 de outubro de 2008

APROVEITE O SILÊNCIO (FRAGMENTO)


(…)

Os vermes vulgares do seu sistema digestivo se petrificaram e cada movimento peristáltico que arrasta pra baixo as porcarias verdes de que se alimenta e de que se compõe é acompanhado por uma sensação aguda de choque nas suas paredes internas sob a escuridão úmida sucedidas pela queimação ácida das feridas desprotegidas. Jurou pra si mesmo que nunca mais odiaria ninguém — mas nunca que ia ser bom; são coisas diferentes — e, enquanto não odiasse, seria superior a tudo, mas quem passa a vida toda sem experimentar essa volúpia dolorosa e sua solidão impotente?

— Mas-ti-gue is-so leeeen-ta-men-te… seu filho da pu-ta… porque eu… eu estou me divertindo muito e preciso de mais, mais, mais.

Podia encontrar seus desafetos — se chama Mautus Fidélis Cohen Filho e, além de uma identidade civil, tem um endereço e uma existência física — em todos os lugares, saindo quando ele estava entrando, passando quando ele estivesse parado numa esquina ou ponto de ônibus sob suspeita ou parados em esquinas ou pontos de ônibus suspeitos quando ele estivesse passando — como desconhecidos interessantes cuja continuidade do destino se ignora, seu pensamento permanecia, fissurado, neles — e todas as palavras que as professoras do primário não gostam de ouvir saindo da boca dos seus alunos aparecem de uma vez misturadas com jargões ultrapassados de filosofia barata surgem na cabeça ao mesmo tempo prontas a fazer uma confusão dos diabos na boca dormente de lidocaína e todos os músculos se tencionam ao mesmo tempo, uns contra os outros e prestes a romper os tendões, à espera confusamente pronta da agressão sempre adiada. Acontece que a sua carapaça começou a endurecer sobre os pontos errados, atravancando as juntas e tornando os ossos quebradiços: não tinha mais a boa sensação em potência de que podia derrubar um cara que agredisse ele, e, justamente nessa hora, enfraquecia sua política de, fisicamente, nunca começar as brigas, apenas se defender, o contrário do que fazia com os argumentos, o falastrão. Agora era ele que, inseguro, precisava provocar as brigas, se quisesse brigar, com palavras mal escolhidas, porque todo mundo julgava ele um filho da puta, ainda, mas ninguém mais se habilitava a querer quebrar aquela cara acabada. Se segurava, pra evitar o pior, a humilhação gratificante da derrota física, mas ficava remoendo o fato de que, caso brigasse, ia acabar no chão, derrotado. Mas nada se comparava à falência moral de sua retórica; sua fala modorrenta e cada vez mais salivada só funcionava e mal com jovens viciados muito ingênuos ou muito pobres. Mas sabe como são os adolescentes e os adultos novos, mesmo os fodidos: não aturam de ninguém mais do que o necessário, e olhe lá, e quanto mais se consegue segurar um deles, mais ele faz cara de que está vendendo o seu tempo e deixou o taxímetro rodando na bandeira 2. Mesmo os fodidos, que ainda fingem alguma consideração, mas muito forçada. Diante de alguém que não se impressione mais com Nietzsche ou coisa parecida, era como se apontasse nas caras um revólver enferrujado do tempo do Getúlio Vargas e que todo mundo soubesse que estava sem balas, e o Mautus acabava provando doses alopáticas do próprio veneno: o último ka, prestativo e ausente, lhe recomendou a lobotomia — o professor Egas Moniz não ganhou o Nobel à toa, meu filho — e o Mautus, porra, reagiu como um adolescente sem vida social querendo comprar uma Playboy sem que ninguém saiba ou como se fosse se drogar pela primeira vez e achasse uma coisa de outro mundo que alguém conseguisse uma dose ilegal de qualquer coisa forte mais perigosa que açúcar, e foi muito ruim, embora fosse o que ele queria — sentir que alguma coisa que ele não tinha podia deixar ele empolgado porque ia ter que se mover pra conseguir essa coisa e isso ia desenferrujar e azeitar suas articulações quebradiças —, porque, em compensação, estava tão longe e difícil que podia não ser alcançado por suas mãos secas duras frias cobertas de coral morto esbranquiçado e ele se sentiu mais velho, humilhado, com ainda menos coisas ao seu alcance e sob o seu controle arbitrário, o que tornava ainda mais pesado ter que enfrentar, todos os dias, a concorrência desleal dos traficantes de drogas tradicionais, que ficaram mais baratas, mais potentes e não tinham os efeitos colaterais sinistros — gente que perdia a sombra e o reflexo, amnésias totais nos piores lugares e momentos (imagine de repente o cara não saber mais que é ser humano e quando volta a desconfiar disso percebe como o conceito é questionável e pira de vez), coabitação de espíritos rivais num mesmo corpo “pequeno demais pra nós dois, parceiro”, abandono de corpos indesejáveis por espíritos derrotistas e desertores, troca de personalidade com as pessoas e os animais que o usuário mais detestava, super-excitações glandulares e vazamentos constrangedores — que os refugos do Mautus causavam nos seus clientes (se conformavam lendo o Livro de Jó e achavam mesmo que eram Jó e que Mautus, como o Deus do Livro de Jó, era um tremendo sacana que pensava que estava com tudo), e o Mautus tinha que se concentrar nesses seus zumbis antigos que não podiam abandonar ele, porque cada vez menos gente nova de fora caía na dele, e ele bajulava seus filhinhos cobertos de lodo e musgo e dizia que dizia que dizia que dizia alguma coisa e pedia, na cara de pau, pra ninguém entrar nos depressivos programas de reabilitação e nas deprimentes clínicas de desintoxicação nem no hospital de Messejana ou no Mira y Lopes, e mesmo quem foi sacaneado pelo Mautus se cansava logo de ver ele se humilhando diante das novas gerações e. A verdade mesmo era que esse Mautus, esse que agora come as migalhas do chão recolhidas com mãos ávidas, era o mesmo de sempre visto sob uma lupa: um coro doente sem força nem vestígio de beleza. Se você olhar as bocas que riem dele, não vai ver mais dente nenhum, e foi por isso que todo mundo se recolheu. Tinha mais graça não.

Uma criatura sentimental numa noite vazia. Eu digo: “revólveres e escapamentos entupidos de máquinas velhas disparam projéteis, fumaça pesada, adrenalina noturna, acelerações cardíacas quase fatais, interrompem poluções, fantasmas macios de pan sexualidades sem limite e a permissividade descontrolada de corpos mal despertos arrastando sonhos e pesadelos disfarçados em passos que conduzem à ruína das famílias”. Mautus preferia ter um machinho arrogante que descontasse nele as agressões que sofria na rua, roubasse seu dinheiro e socasse sua carne flácida como um monte de roupa suja. Alguém a quem esperar, alguém que justificasse sua projeção espiritual tímida na noite que não era mais dele; superfícies duras, cheias de reentrâncias e saliências, cobertas de secreções humanas e vestígios indiscretos de atos safados — uma multidão anônima gritou que esteve aqui, mas ninguém deixou o nome —, músicas ruins e carrancas arrogantes de todos os grupos possíveis de otários sob os olhos práticos e bem calibrados dos malandros de plantão: novas siglas arrojadas foram postas na rua em veículos blindados e profissionais blindados, novos departamentos e burocracias por enquanto eficientes e digitalizadas recebiam o aplauso da classe média amedrontada e a vaia da classe média pretensiosa — conchas de caracol eleáticas cada vez mais pesadas e mais densas e mais imóveis — e o apoio da imprensa farfalhante, mas os caras, os malandros, continuavam onde eram necessários e ainda se perguntavam muito pragmaticamente pra que é que otário quer dinheiro, se. Num pequeno quanto alugado, com cartazes improvisados nas paredes, arrancados de revistas velhas, acalentando sonhos demagógicos e emplastificados de grandeza do seu galinho de briga ativo-passivo auto-limpante, o Mautus estaria pensando nisso, ouvindo os ruídos da música ruim que tocaria em algum lugar cheio de gente agonizante e louca que, se alguém perguntar o que aconteceu, só vai poder sorrir, exalando ácido e fazendo com os olhos metálicos de álcool aquela iluminação fraca que só faz perceber que tudo está muito escuro, porque não vai saber mesmo nem que porra foi aquela nem que cara doido era aquele; o Mautus, o mesmo Mautus que eu conheço e que, não, nunca me enganou, ia estar se esfregando nas paredes feito uma histérica do Lorca, caindo na cama com tesão convulsivo como minhoca no sal e lambendo o seu machinho nas feridas quando visse ele de volta, pra sentir através do outro o gosto pesado e azedo do sobejo de todas as coisas, mas o Mautus, do mesmo jeito que quis ser superior à angústia (teve um tempo que o filho da puta dizia Angust) do ódio, quis ser superior aos lances cômicos do amor — Você disse que ia me amar, você disse, você disse — e agora nenhuma femeazinha plena de humores líquidos e nenhum carinha vago e duro e seco e divertido na sua sensibilidade doentia ia se aproximar dele com a intenção de dar mais do que o necessário e com o preço bem ajustado, apesar de. Ele arrastava por aí um corpo sem impulsos, sem magnetismo positivo nem negativo; podia se sentar pra sempre e ver, na televisão, como os leões do tempo em que havia leões cercavam as zebras do tempo em que havia zebras e comiam elas no tempo em que havia carne ou com os elefantes do tempo em que havia elefantes cobriam suas fêmeas do tempo em que havia fêmeas com seus pênis enormes do tipo no tempo em que havia pênis enormes, mas… porra, o cara não se contentava com nada.

()


[airton uchoa neto]

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

lugares incomuns


que você conhece e ela conhece e ele conhece e eu conheço, mas qual mesmo?