domingo, 12 de agosto de 2012

"TEM UM LOUCO SOLTO NA AMAZÔNIA": OS BRASIS SELVAGENS DE FELIX RICHTER.

Sempre quis ler um livro que não tivesse sido indicado por ninguém e sobre o qual eu não tivesse nunca lido nada. Ao encontrar o romance de Richter, achei que fosse essa a ocasião perfeita. Escolher um livro assim incorre em vários riscos, mas, nesse caso, o risco valeu a pena. Confesso que minha primeira motivação para adquirir/ler o livro se deve à inveja. Tive uma profunda e divina inveja do título. Embora tenha tido uma ideia da narrativa a parir desse mesmo título que não se confirmou. O romance me surpreendeu de forma positiva, mesmo assim. O norte distante e desconhecido da maioria de nós, brasileiros, é mostrado em várias camadas narrativas, no romance, e em todas se vê a impossibilidade de compreender completamente aquela região: de um lado, encontramos um piloto largado na floresta depois que seu avião é roubado por traficantes colombianos; do outro, uma ativista canadense crente de que pode mudar o mundo pretende combater a prostituição infantil nas pequenas cidades amazônicas. Em ambos os casos, a realidade se mostra maior e mais poderosa do que os pobres agentes que cerca, estando eles ali pela própria vontade, como é o caso da ativista, seja pela força das circunstâncias, como é o caso do piloto. A exasperação desse choque se mostra de maneira ainda mais clara no contraste bem pensado entre o narrador, em terceira pessoa e foco bastante jornalístico/documental, e a experiência dos personagens. O narrador é preciso, direto, conta o bastante para que o leitor tenha a perfeita visibilidade da cena, mas permite que os personagens também se movam com certa independência, que eles mostrem ao leitor o desespero que acaba não sendo traduzido em palavras. A loucura que permeia a narrativa, institucionalizada, tacitamente aceita, se desdobra em muitas outras. Como ela vai se refletir reativamente nos próprios indivíduos? Os leitores descubrirão.

quarta-feira, 25 de março de 2009

A UM POEMA QUE SE CHAMARIA SOLUÇÃO QUE SE EXISTISSE SERIA ESSE MESMO

uma casa vazia

uma piramide de garrafas se erguendo na parede

o cinzeiro cheio de pontas apagadas e fósforos queimados e números de telefone

uma peça de roupa que a garota de programa anunciada no jornal esqueceu porque a gente de tão solitário quando achou que nunca mais seria solitário lhe pediu que esquecesse

o acúmulo de caixas com tarjas pretas e nomes estranhos e um sono químico sob o som do Bach mais incompreensível

um álbum de retratos em que todas as fotografias sejam do passado remoto e não existem mais fotografias recentes

pacotes abertos de preservativos e preservativos usados

vômito alcoólico criando vida na pia suja

a luz a água e o telefone cortados

pornografia coberta por teias de esperma cobertas de poeira

relógios enguiçados sob a mesma essa poeira que também se estende sobre a porta e o ferrolho

a consciência de que isso não é nada bonito nem agradável e muito menos revolucionário

os livros que jamais serão lidos

as páginas em branco amarelecendo vazias como velhas virgens

os poemas que se escreveram e não há mais a vontade de correr atrás de uma publicação

as cartas que a gente escreveu e sabia que não ia mandar


porque todos os poemas são como cartas

porque todas as cartas são como poemas


e eu nunca esqueço que vou morrer

e escrever sobre isso não me faz sentir melhor

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

PALESTINA

Sem comida
Sem água
Sem dias seguintes
Sem os olhos e os ouvidos do horizonte trancado
Sem energia nas últimas lâmpadas que não queimaram
Frutos mordidos de vidro
As últimas velas se apagam no meio das últimas orações
Pedem encontros numa terra sem fronteiras
Mas as crateras revelaram no lugar dos braços pendidos da raiz da árvore arrancada
Fios serpenteantes de energia em vão
Canos quebrados gotejando em vão
A última gota de água em vão
Partidas estruturas nuas de metal que não alcançam o céu em vão
Torneiras tossem a pressão vazia do ar
Há mercados vazios trancados por dentro
E portas fechadas erguidas na frente dos escombros
As cinco horas são o vácuo dos minaretes mudos
Caído o eco longínquo não vai encher a memória das crianças sem aula e sem cotidiano
Nem se escrever no espaço em branco do ar
Tornado cinza contra o céu depois do fogo
O chão arenoso coalha de livros rasgados
De fotografias esquecidas
Penúltima imagem de quem já não tem rosto
De documentos abandonados
Nomes de corpos perdidos sem vida e sem inscrição na pedra talhados no peito dos mortos de amanhã
De sementes estéreis de braços vazios
Mãos extirpadas com pedras entre os dedos
E nunca antes se viu as mãos chorar
Os gritos de metal choram da entranha da máquina torturada
A morte real é uma estatística aproximada invisível e muda

Os prédios se erguem mais rápido que os livros de poesia
Os prédios desmoronam mais rápido que o esquecimento sobre o amor
Caim filho de Adão
Não leva nem deixa nada

[airton uchoa neto]

domingo, 21 de dezembro de 2008

NEW VISIONS


escrevendo uma nova história para descansar de uma história anterior talvez impossível de ser completada, como se fosse vida e de repente. eis que penso outras linguagens e, por enquanto, isso me consola, penso em alguém que não vai acreditar que eu estava pensando nela e, na confusão, vai perguntar quem era a outra que ela não sabe que era ela mesma e assim o mundo gira sem que ninguém se compreenda: uma bahia de metal, irmão

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

PROCESSO CRIATIVO

Eu era uma grande escritora até os 70 anos, quando tive uma dor de cabeça. Desde que meu último médico me proibiu o uso de substâncias alucinógenas, alegando que só a maconha que eu já queimara até os sessenta e poucos já era suficiente para salvar até os bisnetos dos meus bisnetos do glaucoma, tive que recorrer a métodos mais lentos para alterar a consciência: então eu estava, como em todos os meus domingos sem promessa de pessoa inútil em que a idade me tornara, deitada no sofá, de pernas abertas e sem calcinha, concentrada em não cerrar as pálpebras, com os olhos num ponto fixo, até perceber as coisas como se elas estivessem se desfazendo. Eu tirava os óculos, esvaziava os olhos da função de ver e me divertia com o derretimento ilusório das coisas como se fosse palpável, como se os móveis e os eletrodomésticos e as paredes estivessem mesmo ganhando vida e pele peristáltica de molusco, quando, na verdade, bastava o mais leve movimento ou mesmo o fechar automático das pálpebras pela necessidade de umedecer as pupilas para restaurar diante dos olhos os aspectos mais sólidos, empíricos e sinestésicos do universo que se conhece desde antes de Newton, sem falar na função natural dos olhos. Acontece que isso nunca antes me deu dor de cabeça; apenas aquele tédio que, quando não angustia, serve para dormir, e dentro do qual, moralmente relaxada, eu chegava a conclusões terríveis sobre a humanidade que me faziam rir.

Minha cabeça doía e tudo começou, quando achei que nada mais teria começo, porque a minha cabeça doía, e bastou esse pequeno fato para eu me lembrar de que tinha um corpo imprevisível e para pôr a perder a rotina da qual eu sempre fugira e enfim se impusera, ironicamente quando nenhum dos meus cinco maridos, que gostariam tanto de me ver comportada, estava vivo para me ver dentro de limites preestabelecidos. Levantar do sofá, espalhar a saia sobre os joelhos, fazer os pés tocarem o chão, nada disso fez com que a ilusão de que as coisas se distorciam se desfizesse, mas o meu tato me alertava de que aquele pesadelo divertido não se tornara real; era eu que, com a cabeça doendo, não conseguia voltar à sensação normal e natural das coisas. Para piorar, não encontrei os óculos; não que eles fossem servir muito porque não era uma questão de correção visual, mas eu preferia estar segura pelo menos de onde estavam as coisas.


[continua]



segunda-feira, 27 de outubro de 2008

LANÇAMENTO DE LIVRO I & II





Série de crônicas de Raymundo Netto para o jornal O Povo sobre fenômenos da literatura cearense bem conhecidos nossos, e, creio, de outros moradores de província


I.


A sina incansável dos autores cearenses desconhecidos (quase todos os são) na ávida busca de seu público leitor para o lançamento de suas obras.

Quando o autor e/ou sua obra são bastante aplaudidos pela crítica e público, das duas, uma: ou eles são muito bons ou são, realmente, muito ruins!

Esse paradoxo que, à primeira vista, parece não significar coisa alguma, também transita em outras linguagens artísticas ou mesmo em outros aspectos menos importantes da vida, como a política, por exemplo.

Não está entendendo? Pois veja só pelo que passei dia desses:

Um desconhecido autor cearense, quase todos os são, ligou para convidar-me para o lançamento de seu livro. Disse ter sabido o número de meu telefone por meio de um “colega”... Assim como aquele outro autor — não menos cearense; não mais conhecido — que contou ter convidado Deus e o mundo para um de seus lançamentos (dizem que faz lançamentos até em paradas de ônibus e banquinhas de feira), e destes, só Deus comparecera, também esse jovem relatou que num primeiro lançamento desse mesmo livro não havia aparecido ninguém. “Ninguém”, achei, era modo de dizer...

O certo é que divulguei o tal lançamento. Era de um romance de título pouco literário, premiado. A capa mais parecia de guia de turismo e nela se lia: “romance indígena”.

Embora com outras e diversas atribuições, prometo, cumpro: fui a tal evento.

Chegando lá, encontrei um jovem de pouca altura por trás de uma mesinha. Perguntei se era o autor. Confirmou-me e retornou:

— E você, quem é?

— Sou o Raymundo Netto.

— Então acho que só vem você! — sentenciou, numa conformação de dar gosto.

O lançamento estava marcado às 19h. Demos, pela ignorância de coisa melhor a fazer em lançamentos de livros, a conversar miolo de pote. Ele falava muito, mostrava-me, espalhados em fila sobre a mesa, os livros de um outro autor que dera, naquela tarde ainda, a certeza da presença e que ele aguardava ansioso para vê-lo autografar suas páginas... Ainda bem, pensei, que por ali não faltavam cadeiras para o rapaz esperá-lo... até hoje!

Confirmou que aos 16 anos “encontrou inclinação à faina poética” e dez anos depois, “romancista, poeta lírico, compositor, teatrólogo, dramaturgo, contista e escritor”, vivia da venda de seus livros — tinha mais de seis títulos, dentre eles, alguns traduzidos para o inglês e francês, garantiu. Lembrei outra figurinha que afirma ser o autor mais “não-publicado” do Ceará...

Em seu livro, assinava as orelhas, o preâmbulo, o posfácio (o prefácio foi o editor) e a extensa sinopse da quarta capa (que tem como fundo a bandeira do Brasil), além de oferecer um glossário, apenso histórico e um roteiro de leitura (lembra daquelas fichas de leitura do tempo de colégio? Voltaram!)

Disse-me não ler livro de ninguém. Autor cearense? Nem pensar! (abria exceção para o Alencarzão) Escrevia e pronto!

Falou-me do “sonho” de entrar para a Academia Cearense de Letras e que “iria labutar, incessantemente, para isso” (angustiei-me). Detalhe: há poucos meses, soube, “adentrou” (acho que ele prefere essa forma) os umbrais de uma das 999 academias de letras existentes no Ceará.

Em meio ao “convescote”, e com todo o jeito, tentei convencê-lo de que aquilo não era romance indígena, pois o autor (ele) não era índio. No máximo, indianista. Ele sorriu paciente e simplificou: todos éramos índios.

— Tudo bem, mas se tentar explicar isso para os índios é capaz de eles se ofenderem... — alertei.

Criticou-me quando soube que eu distribuía livros — “doidice” — e pôs-se a me dar conselhos e orientações. Foi quando, finalmente, perto das 21h, uma funcionária da livraria, muito delicadamente, dirigindo-se a ele, perguntou se achava vir mais alguém — estavam precisando do espaço — e se poderiam servir o coquetel. Ele olhou para mim e lançou: “Pode?” “Sim, claro, acho que é boa a hora!”

Uma mocinha sorridente, então, trouxe-nos duas bandejas circulares grandes com salgados de toda a espécie e vinte e quatro copos de refrigerante. Sentamos os dois numa pequena mesa da livraria, e diante da farta oferta, pus-me a dividi-la com alguns clientes. Uma das, nos disse: Ah, hoje tem lanche por aqui? Está melhorando...

Ao despedir-me, porém, o “neófito” deu-me umas tapinhas nas costas, torceu o canto da boca num sorriso de consolo, e pude perceber que, mesmo diante do imenso vazio de sua solidão, ele ainda conseguia forças para sentir pena de mim.


II.


O escritor Raymundo Netto volta a abordar os caminhos de um escritor às voltas com as gráficas e o lançamento do livro

Nos dias atuais, concordemos, é muito fácil se publicar um livro; não publicá-lo, porém, diante do apelo irresistível da vaidade, é que é difícil. Estava até pensando na possibilidade de não publicar essa crônica... mas fracassei!

Quando o indivíduo, certo de “querer ser” escritor, — aliás, escritor já é “ex” até pelo próprio nome — decide mostrar sua obra a um editor, descobre que no Ceará não se tem disso não. Dá até para se concluir: editora não é bom negócio, caso contrário, os americanos já estariam por cá.

No entanto, quando o escritor consegue juntar uma michariazinha, ou a pede emprestada ao emergente cunhado, a fundo perdido, é claro, acaba se entregando nas mãos de donos de gráficas (com nomes de editora) que batem-lhe às costas e cobram-no o serviço em troca de um “iessebeênizinho” de nada, o que para ele, o sujeito mais solitário e incompreendido do mundo, é motivo de lavar-se em lágrimas. O pior: mal o livro entra no prelo, o desgraçado passa a sonhar com a cerimônia de outorga do famoso e bronzeado quelônio, tão feinho, coitado, que não seria de todo ruim se o deixassem a segurar portas, ao invés das frágeis tartaruguinhas (suas primas) de areia.

Eu mesmo, antes de publicar meu primeiro livro, passei por vários editores, só recebendo, de certo, unânimes parabéns, parabéns, parabéns... Aliás, eles são mestres na técnica de desaparecer após tais parabéns. Conselho: quando for a sua vez, agarre bem a mão de seu editor, senão ele some!

É, vida de escritor não é fácil, mas é criativa. Conheci um que, como muitos, enviava o produto de sua lavra para escritores renomados, aguardando ansioso seus pareceres. Estes, respondiam — pressupomos que deviam ler, mesmo fosse como Jorge Amado (não li, mas já gostei) — por e-mails ou em breves cartas que o autor fotocopiava e distribuía orgulhoso entre amigos e desconhecidos em mesas de bar. Numa dessas, conferi a assinatura de um: “Dr. Scliar”. Ah, e por falar em fotocopiar, outro dia um escritor veterano afirmou que ninguém sabia, mas ele seria o autor cearense mais lido em Pindamonhangaba, via xérox!

Acontece de tudo um pouco por aqui. Outro autor, por exemplo, revoltou-se com o livro “de papel”, fez uma fogueira no fundo do quintal e decidiu publicar somente em blogues. Depois disso, orgulha-se, embora agora tenha mais de 200.000 não-leitores habituais. Tem aquele outro que, após sucessivos insucessos (que construção engraçada!), converteu-se em Jesus e chegou à conclusão de que literatura é coisa do cão, ou mesmo o caso do rapazinho de boca suja que se diz poeta autodidata pós-modernista, pioneiro no Ceará da reforma ortográfica, trocando “j” por “g”, “s” por “z”, dentre outros involuntários barbarismos que ele denomina “rupturas”.

A mais trágica história de autor e editora, entretanto, aconteceu ano passado:

Um poeta, angustiado por não exercer sua arte como ofício, abandonou o chapéu panamá, deixou de vender livros artesanais para turistas do Dragão do Mar e decidiu procurar um editor que publicasse o seu livro (soberbamente recheado de rimas melosas: lua com tua, coração com paixão e solidão, amar com cantar e tererê e tarará). Estava irredutível, disposto inclusive a lançá-lo em local privilegiado cujo apresentador sorridente, apesar de ler muito pouco, não poupa o público de suas súbitas intervenções, antecedendo-as sempre com “eu não sou crítico literário, mas...” e lascando a rouquenta bobagem da noite. Enfim, voltando ao assunto, certo dia, nosso autor marcou hora e reuniu-se com um editor que, mesmo diante de apaixonadas proposições estéticas, rompeu o silêncio e disse-lhe, na lata: “Lamento, não publicamos autores vivos!”

Machucado brutalmente, o poetinha arrastou o caminho de casa. Lá chegando, no centro do quarto vazio e sujo, refletiu: “A Poesia é minha vida!” Assim, retornou à editora, numa inquietação dos diabos, invadindo-lhe o gabinete, e, diante do assombrado editor, revelou, dos coses da calça, a lâmina brilhante. Anunciou:

— Antes a vida pela poesia, que a morte pelo silêncio em agonia!

Dito isso, rasgou, em meio ao pranto soluçante, o pulso magro de escrevente. Encharcado em sangue e lágrimas, antevendo os prováveis estertores finais, lançou-se ainda sobre a mesa editorial, espalhando pelos cantos, as canetas e chaveirinhos:

— E agora, senhor editor, morto estando, que motivo haveria para não me publicar?

O editor, reposta na calça a fralda da camisa, arqueou as sobrancelhas:

— De fato, você cumpriu o primeiro requisito. Agora, pegue os formulários com a secretária, traga os originais encadernados em seis vias com firma reconhecida em cartório, pague uma taxa simbólica e aguarde o telefonema... Ah, e parabéns.


[Raymundo Netto]

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

a new novel (work in progress) my freak show book



APOCALÍPTICOS ETERNOS


“Brasília. Ninguém pensa em Brasília fora de suas asas; ninguém pensa em Brasília fora do cinturão de mil sotaques de suas cidades satélite. O slogan principal da secretaria de turismo daqui devia ser: VENHA MORRER EM BRASÍLIA, porque só esse seria sincero e verdadeiro, só esse teria um significado. Brasília, com a sua planitude infernal, parece confirmar a percepção medieval de que o mundo é chão. O sr. Lúcio Costa projetou o pesadelo ideal do progresso: uma cidade protegida contra vida erguida no meio do ar seco, como se o serrado não parasse de arder suas temporadas de incêndio; o sr. Niemeyer perverteu as curvas, petrificou a carne, sexualizou o metal, e quem vive aqui vive (?) cercado pela dureza camuflada de uma geometria absurda, feita para leis da física que esperam para ser votadas, sem que haja interesse nisso. Em Brasília minha consciência política era tão superficial quanto a do Cazuza e a do Renato Russo, mas eu não saí por aí gritando meu descontentamento porque o meu egoísmo já tinha evoluído para uma nova fase. Meu estoque de drogas ilícitas também é financeiramente limitado. Estou cansado de receber panfletos de ufólogos fundamentalistas: exigem leis que regulamentem a abdução como categoria involuntária de turismo. Me lembra Uberaba, onde li aqueles romances espíritas psicografados, autonecrografias, e concluí que, pra entrar no céu, meu filho, o sujeito tem que escrever mal e não pode ter idéias originais. Cheguei em Brasília mesmo em 2010: fora expulso a tiros de Campo Grande, mas, eu juro, não tem a menor condição de eu ser o pai do garoto. Recém chegado, já publiquei alguns artigos em jornais alternativos sobre a emancipação das maiores potências intelectuais da nação, os macacos raivosos: precisavam ter o direito de se candidatar a cargos públicos. O presidente me chamou para uma conversa e eu, naturalmente, não fui. A primeira coisa que pensei foi: “Porra, o que é que o presidente está fazendo nessa cidade?” Recebi um telegrama: o Excelentíssimo me oferecia um ministério pendente — sua última cartada: o Ministério das Causas Impossíveis, com o quadro de santo Expedito em cada escritório, pisando sua gralha azarada, mas eu não podia aceitar: era devoto de Joana Darc, até perceber que isso não fazia o menor sentido — porque queria aproveitar a minha inteligência numa outra direção antes que a oposição tentasse o mesmo e me fizesse propostas (sabe como é: mantenha os amigos perto e os inimigos mais perto ainda). Também quis me dar uma medalha nem ele mesmo sabia por que, e eu mandei, por escrito, uma resposta bem cordial e dentro dos protocolos da clareza: ‘Cara, o lance é o seguinte: não sou muito de homenagens, não. Termina aí o mandado e a gente toma um trago, mas não aqui: em Palmas. O senhor paga: sabe como é: nunca fui presidente’. Palmas era mesmo o meu próximo passo, mas o cara, que curtia os últimos meses na presidência, nunca me respondeu, nem do próprio punho nem por assessores. Continuei recebendo cartões nas datas comemorativas com o Juscelino de bronze acenando e sorrindo o seu sorriso com seus dentes pretos de bronze e o brasão da república cravado no metal do céu azul. Os cartões devem estar se acumulando no apartamento abandonado. As minhas janelas já tinham vidros demais estilhaçados por pedras jogadas da rua e eu comecei a me preocupar. Devido a ameaças dos macacos raivosos — anarquistas radicais e coerentes que não queriam saber de política partidária nem brincando — tive que antecipar minha ida a Palmas.”

Essa foi a primeira e última mensagem escrita que o Ibrahim me mandou. Ele atravessou as rodovias estaduais com suas margens coalhadas de cadáveres de mulher e as rodovias federais rumo à liberdade e, no seu caminho, encontrou cidades muito boas pra ser infeliz. Quinze anos depois, ele estava de volta, eu ainda não sabia se só de passagem ou pra ficar.

Assim que chegou aqui ele me ligou. Achei estranho porque só os meus contratadores anônimos entravam em contato comigo: eu tinha um daqueles novos telefones especiais sem número que só recebem ligações de telefones escolhidos previamente. Eu entregava as encomendas que me faziam — estudos sobre assuntos esdrúxulos como o pH da urina das tijubinas e o hábito sexual dos insetos noturnos — em depósitos de lixo e ia buscar o pagamento em sacos deixados em lixos 100m distantes do ponto de entrega. Já tentei pegar o dinheiro sem entregar nada, mas o dinheiro não está lá antes de eu fazer a minha parte. Também fiquei de tocaia pra ver quem deixava o dinheiro, mas ninguém apareceu. Isso confirmou a desconfiança de que nas datas de entrega, e talvez a cada segundo, eu estava sendo vigiado, mas desencanei logo e voltei a receber o dinheiro sem maiores problemas. O foda era que eu tinha que me apressar sempre: os horários que eles marcavam eram sempre próximos aos da coleta e, enquanto eu corria pra lixeira de cem metros adiante pra chegar antes do caminhão, uma sombra furtiva se encarregava da minha entrega quando eu já estava longe o bastante.

Quando o Ibrahim me ligou eu tinha acabado de receber. Distribuíra o dinheiro nos bolsos e me livrara do saco plástico contaminado com o odor adocicado de frutas podres. Achei estranho que já estivessem me fazendo uma encomenda nova.

— Airton?

— Sim.

— Sou eu, o Ibrahim.

— Ibrahim?

— Ibrahim Parassés.

Sim: o sotaque de Recife e a voz segura eram bem familiares. Agora, mais velho, ele falava com a tranqüilidade e a serenidade do Mahatma Gandhi: era mesmo genético.

— Ibrahim? Desde quanto você trabalha no Instituto?

Era o único modo de poder me ligar.

— Instituto?

Eu sempre assusto os velhos amigos: eles já me conheceram grilado e paranóico, mas não imaginam como a coisa piorou, desde que fui testemunha principal daqueles atentados ecoterroristas e tive que passar horas dando depoimentos pra polícia federal e entrevistas atropeladas. Do outro lado das portas eu sempre encontrava uma multidão de braços estendidos com microfones, gravadores e telefones. Os aparelhos pareciam extensões transmissoras e captadoras dos corpos informantes. Ninguém me concedia o direito de ficar calado.

— Como conseguiu meu telefone?

— Um amigo seu me conseguiu. Achei um pouco estranho. Me abordou já com a certeza de que a gente se conhecia. M as eu conheci uns descendentes de índio, em Cuiabá, que agiam desse mesmo jeito.

— Com’é qu’ele era?

— Vestia paletó vermelho, usava correntes de ouro e óculos escuros. Que nem os descendentes de índios do Cuiabá. Vivem de tocar guarânia.

— Sei quem é, sei quem é.

Nunca tinha visto ninguém assim: eu me lembraria. Com certeza o ka interceptara o meu confrade e dera um jeito de tornar meu telefone abertamente acessível através de uma combinação numérica arbitrária. Era bom encontrar o Ibrahim depois de tanto tempo. Ele é o tipo de cara que se move em alta velocidade e se comunica em alta freqüência: não importa quantos anos se passe sem conversar com ele a gente sempre tem assunto na volta: Deus o abençoe. Mas o instituto Pangloss ia exigir que eu trocasse o aparelho. Talvez mudassem até de tecnologia, pra evitar novos furos, mas, quando se trata de um ka, e eles já deviam ter sacado isso, nada está imune por muito tempo.

Marquei de encontrar o Ibrahim numa dessas novas praças que construíram, em homenagem a não me lembro que humorista travestido. Têm fama de agradáveis, essas praças novas, mas eu, cada vez mais ranzinza e ultrapassado, evito os lugares recentes: são iguais demais entre si e seu modelo centro-europeu e diferentes demais dos antigos.

Eu não sei se o que ele queria era me sacanear, porque foi ali que eu testemunhei o atentado da galera do Green War (dissidentes radicais de um velho grupo de ativistas pacíficos, hoje fora de atividade) num dia em que não pude evitar pisar lá — eu que já evito ao máximo botar os pés fora de casa —, mas acho que foi por acaso: a notícia circulou por pouco tempo e o meu rosto pressionado só apareceu na televisão por poucos segundos: curiosamente os editores das emissoras escolheram as mesmas frases redundantes e tortas que eu disse sem pensar direito. Espero que ele não tenha sabido do episódio ou que tenha esquecido: pressionado por informadores apressados e seus aparelhos captadores e registradores, muito dificilmente o cara não diz coisas idiotas com cara de idiota.

Encontrei ele a caminho, sabe, na rua Maria Luíza Fontenele. O encontro tinha sido marcado na esquina daquela mesma rua com a Rosa da Fonseca.

— Quando foi que puseram o nome delas nas ruas?

— Quando elas pararam de encher o saco.

Porque são principalmente as melhores das boas intenções as que mais incomodam, como moscas varejeiras tentando lamber a umidade do seu olho, embora em mim não fizessem nem cócegas. Quem é que ouvia elas quando elas falavam mesmo? Pois é: um dia todo mundo se cansa de defender o que é nobre assim como se cansa de tencionar um músculo. As velhas defendiam o anarquismo, o voto nulo e o caralho, com argumentos muito inteligentes, tipo os do Robert Kurz — Apesar de consumir a maior parte do tempo diário, a maioria esmagadora dos que laboram não sente o tempo de trabalho como tempo de vida próprio, mas como tempo morto e vazio, arrebatado à vida como num pesadelo —, mas se as pessoas merecem ser livres e felizes num não-regime de igualdade total, sem culpados, onde qualquer forma de opressão fosse impossibilitada pela ausência de quem compactuasse, eu não sei. A quantidade e a qualidade das pessoas que paravam pra ouvir elas falando (universitários com a vida ganha e idealistas aposentados que passaram a tocha) mostra como era patética e comovente a situação romântica daquelas nobres senhoras, crentes numa melhor humanidade. Reconheço mesmo que se trata de um mundo em algum momento da vida sinceramente desejável — pra quase todo mundo não mais que uma noite insone depois de uma decepção —, mas tão bom que nenhum de nós conseguiria viver nele por mais de alguns dias sem sair por aí procurando uma saída ou corrompendo tudo ou chorando pela guarda paternal e sonhando com algum canalha ideológico que se habilitasse a liderar, e mesmo elas iam ficar bem entediadas, não tendo mais o que pregar num mundo perfeito e todo semelhante a si mesmo. Não importa o que as pessoas dizem quando lhes perguntam se querem ser livres ou se preferem a ver4dade à mentira e, repito, não acredite no que disserem nesse sentido: o direito de que ninguém abre mão é o direito constitucional de ser porco. Deus seja louvado.

Mas a História é engraçada e cínica, e é mesmo feita pelos vencedores. E nós andávamos na rua Maria Luíza Fontenele a caminho da esquina com a Rosa da Fonseca.

— Me disseram que lá vendem o melhor pastel da cidade.

— Mentira. O ambiente lá é todo de acordo com as regras ditatoriais da vigilância sanitária. E você sabe que não se faz um pastel que preste sem óleo saturado.

— Possa crer.

Todo mundo que vem de fora diz que é fácil a gente se localizar em Fortaleza, mas eu mesmo, que nunca passei mais de 72 horas longe daqui e nunca nem mesmo saí do estado, nem de brincadeira, sempre tive problemas pra me situar: os lugares parece que se repetem, e uma esquina do velho Grande Pirambu você jura que viu igual na Messejana ou no bairro do Aeroporto dez anos depois. Todo lugar têm suas vilas abandonadas e portas e janelas lacradas, tijolos nus como cicatrizes mal fechadas, e as contas vencidas com juros, os protestos e os anúncios se acumulando nas pequenas varandas selvagens, terrenos baldios ocultando vigilantes dormentes e espaços vazios cercados de fios elétricos partido, canos quebrados e marcas arenosas das vigas ausentes, como se da noite pro dia um gigante tivesse arrancado a casa que havia ali.

Eu mesmo não me locomovia com muita facilidade porque andava debilitado. Como minha mãe não gostava que eu fumasse eu tinha que sair de casa pra fumar, lá pelos anos 1990-2000, e parei de fumar de madrugada, porque lá em casa reclamavam do cheiro de cigarro que ficava no banheiro até quando eu não fumava. Desde que pude tomar vergonha na cara e morar sozinho, numa autentica maloca de Adoniran Barbosa, “lar, doce lar”, tenho acendido o primeiro cigarro do dia ao acordar e apagado o último antes de dormir, com duas carteiras entre um e outro. Os cigarros também ficaram mais fortes desde que deixaram de ser contrabandeados do Paraguai e do Peru e passaram a ser trazidos ilegalmente da Colômbia e da Bolívia, através do que sobrou da floresta (os narcotraficantes, que precisam de privacidade, no final se mostraram os mais aguerridos defensores da preservação da Amazônia). Era um paranóico ranzinza e um fumante inveterado, cheio de piadas estranhas e fora de hora que faziam os outros olhar pra ele como se de repente se dessem conta de que estão ao lado de um doido, que o Ibrahim ia encontrar.

— Sabe, velho, tirando a calvície, você não mudou nada.

O pior era que o meu cabelo tinha caído assimetricamente: perdi mais cabelo do lado direito do que do esquerdo. Parecia que eu tinha perdido o cabelo por causa de uma queimadura ou de uma cirurgia cerebral ou que tinha fugido de um reformatório.

Chegamos na pastelaria. A pastelaria tinha o nome do humorista travestido homenageado pela praça, naturalmente. Havia nas paredes retratos de um homem alto e desengonçado, maquiado como uma mulher insana e com os seios e as nádegas de um travesti mal planejado.

— Você já foi visitar o dr. Porras?

— Quis, mas ele ficou poderoso demais, tá ligado? Tenho que passar por muita gente uniformizada e preencher muitos formulários, assinar termos de responsabilidade pra falar com ele. Ouvi dizer que com as mulheres a burocracia é menor, mas o cara obriga elas a fazerem exames de sangue e coletas de fluido vaginal e não fala com elas antes de o laboratório liberar o resultado dos exames.

— É. Ele não brinca em serviço. Em casa de malandro vagabundo não pede emprego mesmo.

— Todo ano eu recebo cartões de natal dele. Esse foi o último.

Eu estava na lista de ingratos do dr. Porras — aliás meu nome era o mais antigo e estava no topo da primeira página —, naturalmente nunca recebi um dos seus famosos cartões de natal, mas sabia do que se tratava: eram fotografias em que ele aparecia, sorrindo, enrabando a sua gata da vez. Eram sempre celebridades inacessíveis da música, do cinema, do esporte, das passarelas, da política, o diabo. Depois das fotos divulgadas, cada uma das divas cromadas da ocasião caía em desgraça vertiginosa e conseguia, no máximo, uma ponta em algum programa humorístico da televisão, desses exaustivamente pensados pra não ter graça nenhuma, porque alguém da produção teve pena ou aproveitou os sobejos do dr. Porras. Ninguém é de ferro.

— Como ele sabia o seu endereço?

— No ramo dele ele tem que saber o endereço de todo mundo.

Havia uma igreja católica no centro da praça e era um domingo. Ficamos na pastelaria, esperando nosso pastel de sardinha no molho de tomate e curtindo o movimento. Eu já tinha ido àquela igreja de metal e vidro, porque gosto de ver como cada igreja tortura o seu Cristo. O dali era magro, esguio, nervoso e dramático como os retirantes do Portinari. O bronze em que o mumificaram tornara ainda mais doloroso aquele martírio eternamente revivido.

Continuamos ali, falando de coisas mortas e de coisas vivas. Era só quando o Ibrahim tentava tornar as novas tecnologias mais atraentes que eu ficava entediado. Nesse ponto eu penso como o Hobbes: ainda não surgiu nada que tenha realmente superado o alfabeto.

As mulheres continuavam abusando do corpo, do coração e da inteligência do Ibrahim. Felizmente ele não perdeu sua ginga de cantor de soul e sua percepção realista dos fatos revezada com sonhos estratosféricos até a náusea. Estava no quarto casamento. Ele se lembrou de quando estava conversando com a garota e eu apareci, vindo do banheiro, segurando as calças pra não cair.

— Lendário, velho, lendário. Vou mentir não: estragou o lance, mas foi lindo.

Eu nunca desencano: vexames passados na infância ainda me fazem corar. Imagine esse. Ele ria, e eu ainda queria pedir desculpas a todo mundo porque existia: essas minhas características atávicas de macho β acabam comigo.

Era sobre isso que a gente conversava, malgrado meu, quando as pessoas começaram a sair da igreja correndo, atropelando mendigos, cachorros e pipoqueiros. O pastel de sardinha no molho de tomate não vinha e, como ainda não tinha chegado, a gente ainda não devia nada à casa. Então fomos ver de perto que putaria era aquela. Acabamos nos separando, desencontrados, misturados a uma multidão que não sabia se ia, se vinha ou se voltava. Eu tomava o sentido contrário, rumo ao centro do furacão. Até que numa porta lateral eu dei de cara com um sujeito com uma .44. negra lustrosa e de cano longo na mão, como um pêndulo. Quando me viu fez cara de quem tinha encontrado alguma coisa de repente. Fiz cara de foi-engano, pedi licença, entrei na igreja sentindo o gume dos seus olhos nas minhas coisas, caminhei até a porta do outro lado e dei de cara com ele de novo, como nos desenhos animados, mas ele parecia esbaforido por ter corrido pra me alcançar. Pedi licença de novo — muito constrangido pelo óbvio engano, mas pensando: “Porra, que cara chato!” — e encontrei a multidão. Contornei a igreja de volta até a pastelaria e encontrei o Ibrahim na calçada, à minha espera. O dono da pastelaria e seus funcionários queriam fechar, mas as velhas carolas (carregavam uma imagem do menino Jesus de Praga roubada de igreja, na confusão) queriam encontrar a segurança lá dentro. Entramos na pastelaria e ajudamos o sujeito a baixar as folhas de metal. Quase imprensamos os dedos das velhas obstinadas e, do lado de dentro, ficamos ouvindo pontas de guarda-sol batendo na porta, como pingos grossos de chuva no telhado.

Antes de fechar, porém, vi, sentada no chão da praça, uma velha senhora brancosa e gorda como um porco bem banhado, cobrindo os olhos sangrados com as mãos. Perdera os globos oculares a golpes de ponta de guarda-sol no meio da confusão. Em linguagem bélica isso se chama ser vítima de fogo amigo.

Sentamos na mesa. A mesma mesa.

— O que é que vocês querem aqui?

— Nossos pastéis.

Os caras se olharam. Não custava nada: a gente ia pagar.

Resolveram nos servir. A confusão nos tornou clientes quase exclusivos, mas aí a gente notou que havia um terceiro elemento: vestia paletó vermelho, usava correntes e óculos escuros.

— Olha só. Achei que nunca mais ia ver você.

— Tá brincano? Adoro o pastel daqui.

Trazia um livro amarelo com ele. Nunca tinha visto ele com livros. Embora isso não me espantasse porque nele nada me espantava.

— Lendo Raduan Nassar?

— Tenho algum tempo sobrando.

— Que tal?

— Um dos maiores escritores brasileiros do século XIX. Me recomendaram Hilda Hist. Que me diz?

— Uma vez eu usei um livro dela como apoio, pra dar uma cheirada. Pelo menos uma vez o livro dela serviu pra alguma coisa.

Ibrahim reconheceu o cara e nos sentamos os três, amistosamente, esperando nossos pastéis de sardinha no molho de tomate. Os ka são malandros, mas também são gente fina: são vêm com malandragem pra escapar de ameaças. Sua presença ali, como sempre, foi muito providencial: somente ele podia explicar o que estava acontecendo ali, porque eu mesmo não tinha entendido nada.

— Vai dizer que não sabe de quem se trata? Aquele com o revólver na mão é o Noriega Acyoli.

Comecei a tremer e a gaguejar. Até o Ibrahim ficou preocupado. Não tive medo porque ele estivesse armado; isso eu já tinha visto. Temi pelo que ele representava: era a única pessoa no mundo que eu admirava e evitava a todo custo. Imagine que você está aprendendo uns acordes de violão na calçada e erra o tempo todo. Aí, quando você já está puto e prestes a quebrar o violão a golpes de rock’n’rol, passo o João Gilberto e cumprimenta você… Era uma coisa assim que eu sentia com a presença do Noriega Acyoli. Noriega Acyoli não era o seu nome real, naturalmente, mas ninguém sabia como ele se chamava de mesmo nem de onde vinha. Eu já fizera alguma coisa parecida; trabalhara sob encomendas sinistras usando um pseudônimo da insular, mas nem se comparava, meu chapa.

O Ibrahim ainda não tinha sacado.

— Noriega Acyoli?

O ka lhe explicou.

— Assassino profissional e escritor vanguardista de best-sellers. Lhe encomendam o assassinato. Ele executa sem nem querer saber a razão. Profissional. E, depois, transforma o crime em experiência literária e some. Escreve em inglês, francês, espanhol e português. Atua em todo continente americano, do Alasca às Malvinas, e escreve seus relatos sempre na variante lingüística do cenário de suas narrativas. É como se tivesse nascido em todos os lugares. É engraçado. Assassinos profissionais aproveitam o lucro pra levar vida mansa, enchendo a cara e pagando mulheres em cidades perdidas nas beiras do Pantanal e da Amazônia, até que surja um outro serviçinho de limpeza, mas esse perde o tempo escrevendo livros.

— Ele não seria um ka? — perguntei ironicamente.

— Não. Os ka não são bonitos nem precisam usar disfarces e cirurgias plásticas quando querem sumir. Você devia sacar do Noriega. Escreveu um artigo sobre ele quase vinte anos antes de ele aparecer em ação.

O artigo fora publicado numa revista eletrônica do próprio Ibrahim, nos bons tempos. O Ibrahim mesmo estava mais por fora do que rola de índio. Eu me lembrava mais ou menos de ter escrito aquele artigo e de ter dado um título a ele. Num certo trecho chego mesmo a dizer: (…). Defendia a idéia de que só os criminosos verdadeiros, adorados secretamente, seriam escritores possíveis da década de 2010 em diante e lamentava que meus sonhos não pudessem se realizar. Agora que o meu sonho se realizava — como eu previra, as mulheres caíam pelo Noriega, que, segundo os boatos, era um sujeito altamente atormentado, mas na verdade o que fomentava essa ilusão eram os artigos semanais de Madame Nefertiti que saiam no jornal e se dedicavam a descobrir, psicologicamente, quem era Noriega Acyoli: as mulheres são engraçadas, sempre têm preferência por sofredores egocêntricos que detém algum poder —, agora que a coisa estava acontecendo nem eu mesmo conseguia acreditar e começava a tremer.

— Ninguém devia brincar com o futuro.

Nunca duvide de um ka quando ele fala sobre o tempo.

E era claro que ele tinha razão. Sem dúvida. Aquele era o método de ação do Noriega Acyoli: caçava sua vítima na multidão dispersa, como os leões faziam com as manadas estouradas das zebras, no tempo em que havia leões e zebras.

— Até hoje ele nunca falhou.

— Eu sei, mas quem é a vítima?

— Vamos saber quando ele completar o serviço.

Comemos nossos pastéis com refrigerante de jaca. Terminamos, pagamos e, como a chuva de pontas de guarda-sol não parava — as velhas eram mais tenazes do que eu podia imaginar —, perguntamos se havia saída pelos fundos.

— Muito bom. Meu carro ficou estacionado lá.

— Por que estacionou o carro lá. T’encontrei andano na rua.

— Sempre faço isso. Estaciono o carro em qualquer lugar e começo a circular por aí a pé mesmo.

O Ibrahim de sempre…

Era um conversível amarelo, baixo, com placa do tempo em que as placas eram amarelas, tinham apenas duas letras e quatro números de identificação. E o carro, porra, era todo original. Fosse que modelo fosse aquele: macho β: entendo nada de carro. Foram os saudosistas que pressionaram pra ter o direito de ter carros registrados à antiga, mas não devia haver mais de dez daquele circulando por aí. Francamente eu nem queria saber onde estavam os outros nove: queria mas era entrar e que o Ibrahim disparasse.

Porque o Noriega Acyoli apareceu na esquina; estava olhando pra mim. Os caras olharam pra mim também e até eu olhei pra trás pra saber se havia mais alguém, mas não, era eu mesmo.

Entramos no carro e o Ibrahim disparou. Senti a arrancada nos ossos e no estômago cheio de pastel de sardinha no molho de tomate.

— Ele não vai atirar. E, se atirar, vai ser com a certeza de acertar só o alvo. Que parece que é o Airton.

— Tá dizeno isso pra me tranqüilizar?

— Não. Pra tranqüilizar o Ibrahim. Ele tá no volante, né?

Noriega Acyoli — quanta honra — estava atrás de mim.

— Por que eu?

— Sei não. Por que?

— Eu não sei porque ele veio atrás de mim. É por isso que eu perguntei.

— O Instituto… talvez.

— O instituto?

Até o Ibrahim perdeu a pose de concentrado.

— O Instituto?

O Ibrahim parecia que não sabia do que se tratava. Lhe explicamos confusamente o Instituto e a entidade dos ka e os magnetizadores russos e os para-normais americanos e o caralho. O Ibrahim se lembrou: por causa das suas teorias sobre macacos raivosos o Instituto procurou ele em Brasília, mas o Ibrahim, malandro, se apresentou voluntariamente e a galera do Instituto, diante da cara de amélia que o Ibrahim sabe fazer nos melhores momentos, perdeu todo o interesse nele.

Aí uma blitz nos parou. Já era noite, mas as luzes dos postes estavam estrategicamente apagadas. Um tira mascarado saiu do outro lado da barreira e veio bater nos vidros. Tinha o rosto coberto por uma máscara de lã e usava óculos de visão noturna. Parecia até um animal mais perspicaz que o ser humano.

— Estamos procurando o senhor.

Era comigo que ele estava falando. E com tanta certeza que nem perguntou como me chamava.

— Que foi qu’eu fiz?

— Falou mal das patronas das ruas Rosa da Fonseca e Maria Luíza Fontenele.

— Porra! M’esqueci que tem microfone nos postes.

Saí do carro sob os olhos impotentes do Ibrahim. O ka estava tranqüilo como eu: tudo foi muito providencial.

— Apesar de tudo, você pode contar com o Instituto, às vezes.

— É. Valeu, Ibrahim. Foi bom te ver.

— Falou, parceiro. Te cuida aí.

O Ibrahim se despedia de muitos amigos desse jeito: vinha a polícia e levava eles embora.

As luzes se acenderam de repente. A barreira foi retirada e Ibrahim seguiu o caminho.

Fui posto no camburão com dois ladrões descamisados, amigos de infância que não me reconheceram e me olharam com cara feia. Eu nem ligava: ia passar pelo menos uma noite tranqüila.

E o Noriega ia me caçar numa cidade vazia.

[airton uchoa neto]