quinta-feira, 28 de agosto de 2008

assalto contra o ideal


os quais, textos, escrevi o quase limite das minhas experiências beirando o ilegível; não os inscrevi, por provocação, em certo concurso literário muito famoso e concorrido por aqui porque perdi o prazo: mas não o tempo: mais uma parábola para uma estrela dançante


00:00—00:01—00:02

— “Já chega a dezesseis o número de vítimas do.” — Jornalistas: sempre querem parecer tão sabidos.
Matagal à beira da lagoa…
— Gosto disso não, sabe?
Matagal à beira da lagoa sob o outro ponto de vista: Ele chora, sem dignidade: sendo o sujeito com a arma apontada pra cabeça ele gosta ainda do.
— Tem certeza?
Modorrento e nu ele diz: espaço fora do tempo para o que ele diz; ao longe se ouve um tiro e talvez ele não tenha nem. Lembra do que viu pela manhã? Um sorriso de menina: atravessou em. Ela, adulta, sorria ouvindo:
— Me leva a sério não, vai lá.
O tempo de uma coruja atravessar uma rua, uma daquelas corujas brancas e fantasmagóricas, é esse, mas também é maior e. No segundo seguinte (pertence às coisas fora desse tempo) olhos vão se abrir e corpos vão se erguer pela metade, para, logo depois de. É o tempo dos dormentes e dos amantes que vai. Alguém com alguém que não. Do outro lado do mundo, os cangurus despertos e ensolarados farejam que.


ESTÉTICA KANTIANA SEGUNDO O DIVINO

Sob a agulha sismográfica dos.
“Amar a Deus acima de todas as.”
As mentiras, segundo minhas investigações filosóficas & científicas, se assemelham a órgãos sexuais infectados por doenças venéreas, pois desde o século XVII, já se praticava o.
— Vai, amor, me chama de.
— NÃO, NÃO, NÃO! Por.
— Pára de chorar, cala boca e.
Agressões físicas e extorsões cercam. Grilos. Gatos.
— É cinco real, e aí?
— Um cigarro. E é se.
5/100 = 0,05 = melhor que. Passa um trem. Pneus mastigando a areia rumo a. Passos e cães despertos que. Vazio: vazio: vazio: vazio elevado a potência infinita.O artista do século: ligado aos sensores que lhe transmitiram, num segundo, todas as sensações do. No segundo seguinte, estava morto e sem. Segundo o repórter agasalhado e careca, com a cidade de Moscou, Nova Iorque ou Bombaim ao fundo, os médicos alegaram que.


FAIXA 13 REVISITADA

31 de dezembro de 2008…
— Sabe quanta coisa eu queria dizer pra ela?
— Não.
— Nem eu. Também não sei o que ia dizer, mas com ela do meu lado eu precisava dizer alguma coisa.
Um dia de julho daquele mesmo ano…
— Você é maluco? Como é que foi fazer uma aposta assim? — Apesar disso, ela ria. Ele a via como se pudesse vê-la com os olhos da mãe dela.
— Se pra levar você pra cama eu tiver que beijar o primeiro PM que eu encontrar, então eu vou beijar o primeiro PM que eu encontrar. — Nunca teve um sorriso tão confiante. Mas a verdade é que ninguém saiu do bar; a aposta (sobre o que era mesmo?) virou brincadeira inconseqüente. Ele e ela passaram semanas e semanas e semanas sem se ver, e pensaram no que se passou até que a brasa virou cinza. Agosto: — Quer o meu sangue também? Não lhe basta o meu tempo? Eu estou desperdiçando a vida, sabia? Desperdiçando a vida! — Gostou da frase e repetiu até ficar chato. Viu um homem que conhecia só de vista atropelado e morto sobre o asfalto. Da última vez que o vira vivo, conversava com amigos, parecia feliz, o vento brincava com a sua barba. Setembro… Outubro… Novembro… O cinema é a melhor diversão. Os jornais ainda trazem notícia e nenhum telefonema era inesperado. Um copo de vinho pela metade. O vulto de um homem sentado. Uma voz mecanicamente reproduzida. All’alba vinceró! Dezembro…Põe as mãos nos bolsos, depois de se despedir do último amigo do século anterior, caminha como quem não quer ser visto. Está só. No litoral, a cidade comemora.

sábado, 23 de agosto de 2008

O PERIGO DA PIADA SUJA


(formatação original do texto: para ampliação)

NÃO ESPERAVA QUE OS RATOS VIESSEM NO SEU ENCALÇO? eles sempre estiveram lá’ à espreita: OS DESPERTOS REVESANDO COM OS DORMENTES’ os vivos substituindo os mortos E ADOTANDO SEUS MESMOS ROSTOS DE RATO E SIMULANDO UMA IMORTALIDADE ANÔNIMA DE MASSA ><><><><><><><><><><><><><
[airton uchoa neto]

VIDA FELIZ


HÁ JÁ ALGUNS DIAS ACOMPANHO OCUPANTES DE UM MALDITO TERRENO ABANDONADO QUE A PREFEITURA TEIMA EM SER ÁREA VERDE. À MEIA DISTÂNCIA ENTRE MINHA CASA E MEU LOCAL DE ESTÁGIO, TORNOU-SE INTRAGÁVEL E INTOLERÁVEL PERMANECER OMISSO ÀQUELE LOCAL E AOS EVENTOS QUE O CERCAM.

Depois de tentar alguns contatos, todos frustrados, com a imprensa. (Mesmo sendo ciente da superestima da classe por parte do povo, que a mim sempre perguntava: 'Ei, David, tu deve conhecer gente de jornal, gente de televisão. Chama esse povo'.
Ao que eu retrucava: 'Nego véi, jornalista não resolve porra nenhuma, não. Vão chegar aqui, como já vieram, vão fazer uma matéria e botar uma grana no bolso'... - 'Sei, David...'
Em tais tentativas, toscas, com o tido 4ª poder - realmente poderoso a serviço da superestrutura - também falei com Delane Ratts, âncora do jornal das 6 da Cidade: 'Lá é ilegal mesmo'...
Pode crer.
Poder crer, porra.
Viva o verde rico de entulhos e esgotos em detrimento do bucho do povo. Viva a merda da vaca às custas do descanso da velha. Viva a PUTA QUE O PARIU - mas não dê vivas ao Márcio, flanelinha da Engenheiro Santana Júnior, espancado duas vezes, ontem, pela guarda municipal - ele se quer reagira ao ver sua casa (leia-se, quatro paus em um três por três, sem piso e tão somente com teto de sacos). Para mim o Iguatemi é a Siciliano e seus livros caros. Para o Márcio, um distante e penossísimo local próximo ao seu árduo trabalho... enquanto apanhava, Márcio foi chamado de vagabundo.
Ou seja - he, he - VIVA A PUTA QUE O PARIu - mas não daremos vivas à Tia Maria - senhora que poderia ser nossa mãe. Depois de também perder seu humilhante pedaço por humilhantes 4 vezes - a Guarda Municipal foi à forra e à espoliação. Chegaram à tia Maria: 'Precisamos levar todos seus pertences'. Em tempo: Um colchão sujo, velho e desgastado, duas panelas imundas e algumas garrafas, vazias, de refrigerantes 2 litros e sua bolsa - experimentem viver com TODO esse luxo - 'Passa logo tudo pra cá' - berrou a porra do policial. 'Senhor, não faça isso comigo, por favor'. Nesse instante tomei o colchão de tia maria e corrí com ele pelos quarteirões do Vila União, com a Guarda atrás de mim e dos outros.
Salvei o colchão.
Soube depois, da própria Tia Maria, que levaram sua bolsa. Dentro dela, todos os seus documentos e o registro de sua filha. Conseguido à duras penas numa sacrificada viagem rápida de retorno a Juazeiro.
De onde eu venho, isso que a polícia fez se chama 157.
UM GRANDE VIVA A NOSSA GESTÃO VERMELHA E AO SISTEMA ELEITORAL. UM GRANDE VIVA AO DEUS DE MÁRCIO E TAMBÉM O DA TIA MARIA.
... ufa...

Diário de Bordo - estou à deriva no mundo.
Ontem à tarde marquei de encontrar, no CH da UECE, com Tatiana (estudante de Serviço Social), Thalita (também do Serviço Social) e Inaldo (da Letras) - o Bruno Mezenga (Ciências Sociais) ficou de aparecer mais tarde.
O intuito do encontro era desenvolvermos, sem amarras na universidade, sem nome, sem sigla e sem hierarquia, um trabalho de educação nos ocupantes. Movidos tão somente pela necessidade, boa parte ainda acredita nos políticos, na imprensa... e passa longe de ter condição organizacional.
Já era de meu gosto tentar algo assim. Sair do planejar/discutir e fazer. Encerrar os debates acerca da dúvida cartesiana enquanto cética ou somente propedêutica e afins. "Estou cansado de ouvir falar em Freud, Jung, Marx"...
Somado à minha vontade, estava o convite, realizado quarta-feira última, por uma das líderes de um movimento sem nome, mas com a perspectiva de unificar as ações de ocupação em Fortaleza - com contatos também em Itaitinga.
(Voltando ao encontro no CH da UECE)
Expliquei aos outros três presentes tudo o que sabia. Reiterei o convite.
Iniciava nossa marcha da 5ª feira 13.
Iríamos visitar a ocupação. Começamos por sua origem: Rua do Guga, um pedaço ocupado anos atrás. Localizado em frente ao Parreão, a rua tem esse nome por que, certa vez, um de seus moradores, estudante do Juarez Távora, ao pular o muro de seu colégio, com tantos outros, num feriado, foi morto com dois tiros pelo vigia. O último deles enquanto Guga ferido e pedindo que não. O nome da rua é uma bela - porém irônica - mensagem póstuma.
Na rua do Guga, procurei Larissa, aluna minha. Queríamos saber a origem da ocupação.
'Vamu na dona Nilda. É a mais velha aqui... avó do Guga'...
E duas casa à diante, entramos. Quatro estranhos, (o Inaldo tem 1,94 cm), mas fomos, como quase sempre em tais situações, bem recebidos.
E dona Nilda: 'Isso tudo era mato, meus filhos. Quando cheguei não tinha nada. Ajudei muita gente'.
Daí seu Chico, antes tão calado, desembesta - a voz trêmula como a mão que segura à bengala, a cor clara como não havia na capital à época de seu Chico, não entre os trabalhadores - 'Eu trabalhava e morava num hotel que não tem mais. Ele ficava aqui onde hoje é CDA FIAT, doutor Alcântra disse que eu podia ficar. Só minha casa mermu. Mar aí veio mais. Meus filhos, alguns fizeram casa por aqui... foi uma luta'.
'Quando aqui o senhor chegou, seu Chico? Que ano?'.
'Ano num sei dizer não. Sho vê aqui na minha carteira. Fui vigia da construção da CDA... tá aqui, cheguei aqui em 86, depois do hotel, aterrei, construí cano, ajudei us amigo... a CDA é de 97, foi quando ficou ruim'.
'Ficamu exprimido nesse canto, agente chamou muito a COELCE mas nunca vinha. Juntamo dinheiro e compramu um poste na entrada, na Borges de Melo. Pra cá pra dentú é tudo de madeira. Cum a CDA o terreno diminuiu, mas chegava mais gente. Era muito relógio num poste só... nesse dia a COLCE veio'.
'Seu Chico, como era antes da CDA?'
'Num alagava, num sabe? Num tinha isso. Eles levantaram o muro e desviaram o canal. Quando chove alaga, mas num instante passa'.
'E essa é a graça de meu Deus. Deus é forte. Comentou dona Nilda'.
Seu Chico leva a mim a ao Inaldo para verificarmos o muro da CDA e o desvio do canal.
Tatiana e Thalita permanecem na casa com dona Nilda.
Antes disso, perguntamos ao seu Chico: 'O que o senhor pensa da ocupação mais à frente, na continuação do terreno'.
'Eu penso que eu num gosto não. Né do meu gosto não. Agente aqui tem tudo casa de tijolo. Humilde, mas de tijolo, num sabe? Num tem nada que nem lá que é só uns pau e uns saco. Vai ser ruim pru povo dessa rua. Tem muita criança aqui... nós sámu tranquilo'.
Tatiana e Thalita se juntam a nós: 'dona Nilda já cuidou de muita criança. Na reconstrução da rodoviária, vários meninos de rua vieram para cá. Ela chegou a abrigar 32 meninos. Os tratava como à sua filha. Hoje alguns moram por aqui, outros foram para o interior. O último saiu 2 anos atrás. Ela fez isso durante 5 anos'.
'Massa, cara - comentei - sem ONG, sem projeto, sem porra nenhuma. Isso que é'.
Nos despedimos e chegamos ao local da ocupação. Era intenção minha passar lá para melhor explicar tudo aos meus colegas. Contudo, na noite anterior eu mesmo ajudara na mudança para outro terreno - um quarteirão à frente.
O terreno que então nos encontrávamos tinha várias marcas da ocupação.
Quase que composto por completo de entulho, lixo e capim. O terreno é cortado por um canal, via de regra, seboso. Localizado às costas da CDA e à frente de uma enorme casa com placa de vende-se; rodeado por grandes prédios (no caminho ouvimos algo a respeito de um abaixo assinado entre os moradores para expulsar os sem terra), alega-se que o terreno é área verde e que nada pode ser construído próximo ao canal. (Vai ver tem uma cláusula autorizando a CDA a fazer tudo com o canal - várias casas da região também estão por sobre o riacho/canal/seboso).
O terreno, para os que conhecem, localiza-se quarteirão ao lado da casa do Çilprila (Ramon), grande amigo.
Enfim, nosso intuito se aproximava. Minha mente pseudofilosófica imaginava maneira de interagir com os ocupantes. Estive presente na última semana - no caminho todos me cumprimentam, agradecem. Mostro meus amigos e mais felizes ficam.
'Lá vem os doutisinhu. Pessoal massa. Valeu, galera'.
ISSO É PERIGOSO - NÓS SABEMOS - NÃO QUEREMOS MANIPULAR NINGUÉM - NÃO SEREMOS ÍDOLOS.
Há muito trabalho a ser feito. Penso que o coração das meninas pululava com expectativas. Elas estavam nitidamente dispostas... massa, vai da certo, vai dar certo, vai dar certo...
'Boa tarde, Filgueiras' - falamos com um dos líderes. Não reivindica casa para si, tem a sua em Messejana, mas luta para que ocupações vinguem. Há 14 dias reveza entre acordar às 4 da manhã em Messejana e ir para a ocupação, ou dormir por lá mesmo.
'Opa, boa tarde, entrem (a "casa" não tinha paredes, ou seja, sacos para cobri-la... 'era uma casa muito engraçada'...).
'Filgueiras, tá aqui o pessoal. Eles vieram conhecer, falar com os ocupantes. Como a Ila disse, viemos dar pernas ao movimento'.
Vários ocupantes nos cumprimentam.
Começa agora pra valer o dia de ontem. 13/07/06.
Corre-corre geral.
Uma mulher que grita.
'David, aquilo ali'. Me chama Thalita.
Eram cerca de 40 da Guarda Municipal de Fortaleza.
Estávamos em um mísero canteiro divisor, na Av. 13 de Abril, bem em frente ao colégio Papa João XXIII - salvem a ordem papal.
Armados para guerra civil. Escudos transparentes, cassetetes, capacetes reluzentes e a determinação de manter tudo em seu lugar.
'Vamos lá trocar uma idéia' - falou o Inaldo.
Fomos os quatro.
Me apresento ao batalhão. O olhar de repulsa e espanto de um deles. Falo: 'Boa tarde' e estendo a mão - analisando um tempo meus dedos, quando quase já me encaminhava a desistir do cumprimento, ele cela a comunicação.
Continuo: 'Somos universitários da UECE (maldita instituição EU TINHA que falar isso - era o quê, um escudo da minha parte? Bem, falar o que para o homem, tal como eu tava, e tal como ele tava, não podia sequer feri-lo. Meus socos encontrariam sua armadura e seu spray de pimenta meus olhos, assim como seu cassetete, meus ossos.) 'Nós estamos acompanhando essa ocupação e queremos saber quais são as ordens. Quais suas orientações e quem é o encarregado chefe da missão' - terminei sem gaguejar.
'Você está falando com a pessoa errada. O comandante tá lá atrás'.
Saiu com seu batalhão e meu às costas. Eu e o Inaldo seguimos. As meninas tentavam encontrar o tal comandante e colher informações.
E o policial que falara comigo, ao chegar à liderança:
'Vim cumprir ordens. Quem LIDERA?’ - mas não era hora deles se identificarem.
'CADÊ A LIDERANÇA? EU SEI QUE TEM'
'Seguinte, to vendo que tem muita mulher e muita criança, NÓS NÃO VAMOS DISPENSAR NINGUÉM. NÓS NÃO VAMOS DISPENSAR NINGUÉM. Vocês têm 10 minutos pra tirar suas coisas'. E retornaram a formação oficial. Em pé, em frente ao seu caminhão. Um do lado do outro, fechando a rua. Onipotentes e onifudentes.
Os ocupantes se reúnem – única possibilidade: por seus parcos pertences na calçada do Papa XXIII e ver, pela 5ª vez em 14 dias, suas casas engraçadas serem estraçalhadas pelos funcionários da SER IV - pois a coisa é hierarquizada: a polícia, a Guarda Municipal, essa não está ali para quebrar barracos, e sim ossos. Os funcionários com os coletes da SER IV, quase tão pobres quanto os ocupantes - em boa parte - esses sim quebram os barracos.
Tia Maria chora: 'De novo, meu filho' - e corre com suas panelas para a calçada.
Márcio chora. Muitos outros também. Deve haver 3 recém-nascidos, com meses de vida, na confusão.
Eu e o Inaldo ajudamos no corre-corre com as coisas. Um sofá velho, diz o dono, ‘pode deixar aí. Não tenho mermu com levá'.
'Vamos colocar o sofá na rua e ver o rídiculo bem perto' - me convida o Inaldo.
E assim a lógica capitalista se cumpre diante dos nossos olhos. Como numa sinfonia, tudo tem seu som: o colchão maltrapilho, as panelas encardidas e os instrumentos, enxada, foice, facão, cordas, chibanca - tudo ia sendo roubado, jogado no caminhão.
O povo das calçadas, num misto de ocupantes chorosos e passantes curiosos, via a polícia exercer sua função maestral. Garantir meus direitos e de todos que lerão esse e-mail.
Num dado momento, um homem à paisana tira uma foto minha e do Inaldo sentados no sofá:
'Qual é seu nome?'
'Pra que vocês querem saber?'
'Você não pode fazer o que fez sem autorização nossa. Que crimes cometemos?'.
De costas, ele dá um legal e vai se encontrar com outro à paisana, que filmava.
Inaldo e eu vamos atrás.
'Volta aqui. Qual o seu nome?'
Ele volta. Atrás da gente, o ávido e prestativo pessoal da SER IV: 'Vai, vai, levantaram. Pega o sofá, pega...'.
'Você num tá do lado da lei?' - pergunto ao fotógrafo.
'Tô' - sorrí.
'Então me diga seu nome. Porque temer?'
'Vá perguntar ao comandante' - debocha
'Tu sabe que isso num vai dá em nada. Tu tá só empurrando burocracia. Diz teu nome e teu cargo' disse o Inaldo.
'TU JÁ TÁ ATRAPALHANDO DEMAIS' - era um gordo membro da guarda. O homem com quem falei no início também se aproxima.
'TU TA ATRAPALHANDO NOSSO TRABALHO. EU TO AVISANDO'
'Se retire' - fala o líder com quem falei no início.
Dando um passo para trás. O suficiente para sair por inteiro do canteiro divisor e pisar na sarjeta, sobre o asfalto; estendo os braços, olhos nos olhos dele e pergunto:
'ATÉ AQUI TÁ BOM PRA VOCÊ?' - mas a vontade era muito maior.
'EU TO AVISANDO. TO AVISANDO, VOCÊ TA ATRAPALHANDO'.
'Porque você grita comigo. O que eu fiz? Pra que essa alteração? Vocês tão quebrando tudo'.
'EU NÃO TO GRITANDO. QUEM TÁ ATRAPALHANDO É VOCÊ. VOCÊ QUE TÁ FAZENDO CONFUSÃO. JÁ AVISEI PELA ÚLTIMA VEZ'.
'E depois da última vez. Acontece o quê?
'Também quero saber' - disse o Inaldo
'OLHE, OLHE'.
'Vai fazer o que? Me bater?' - pergunto com olho no olho.
Antes da resposta, a correria. Os filhos da puta, com medo de bater nuns burguesinhos de merda brincando de revolucionário, alegaram xingamento por parte dos ocupantes e correram pra cima.
Descontaram a raiva e foram à forra. Márcio levou um forte pisão no joelho. Sentiu a entrada maldosa do coturno, "pra tirar da profissão", de cima para baixo. Rodopiou, caiu e levantou. Correu com cacetadas nas costas enquanto outros também corriam e apanhavam.
Eu, Tatiana, Thalita e Inaldo, juntos a alguns ocupantes, corremos para acalmar os ânimos. Conseguimos.
Agora era hora do sentar e ver a beleza do mundo se fazendo no perfilar de destruições sofridas pelo pobre. Tudo foi sendo quebrado.
No momento do tumulto, os homens à paisana, o fotógrafo (que na hora da chibata alegou ter sido xingado por Márcio e praguejava: 'Eu não sou igual a vocês, não porra. Eu to trabalhando e não vagabundando que nem vocês, seus merdas. Eu tenho casa') bem como o cinegrafista, não fotografaram nem filmaram nada.
Depois descobrimos que eram dois funcionários da Inteligência da Guarda Municipal.
Durante a remoção dos barracos, ouvíamos constantemente: "Chamem a imprensa", "chamem a imprensa" - impressa meu zovo.
Nós quatro nos esforçávamos em desmitificar o 4ª poder.
Pouco tempo depois, um carro do jornal o Povo.
Partes dos ocupantes pedem para que eu fale com o repórter.
'Prazer, sou David' - enquanto os policiais literalmente posaram para uma foto ante um barraco. Sorrindo e acenando.
'Carlos Henrique, David'.
'Conhece o Pedro, estagiário?'.
'Não'.
'E a Angélica?'
'Talvez só de vista'.
Henrique me entrevistou. Pediu para que chamasse os agredidos e assim o fiz, também foram entrevistados. O fotógrafo que o acompanhava tirou muitas fotos. Henrique entrevistou alguns guardas, ficou por ali, e só depois de muitos minutos pareceu ir embora. Fui até ele. Conversei enquanto ele tomava muitas notas. Pareceu também está puto, assim como puto estava o fotógrafo com seu sotaque não nordestino.
E quando iam embora, pois a Guarda também parecia ir, eu os avisei: 'Olha lá, porra'.
A Guarda retomava sua ridícula formação e se encaminhava para a calçada do Papa XXIII. Chego lá correndo Chegaram à tia Maria: 'Precisamos levar todos seus pertences'. Em tempo: Um colchão sujo, velho e desgastado, duas panelas imundas e algumas garrafas, vazias, de refrigerantes 2 litros e sua bolsa - experimentem viver com TODO esse luxo - 'Passa logo tudo pra cá' - berrou a porra do policial. 'Senhor, não faça isso comigo, por favor'. Nesse instante tomei o colchão de tia maria e corri com ele pelos quarteirões do Vila União, com a Guarda atrás de mim e dos outros.
Como um estranho herói, meu amigo Bruno Mezenga aparece nesse momento. Num primeiro instante eu o vi, num outro já corria da Guarda com colchões nas mãos.
Lenta e impassiva, em meio a uma cidade tida vermelha e civilizada, os bestiais da Guarda Burguesa, fechavam a rua em sua marcha, mesmo as calçadas. Seu passo era lentíssimo e tenebroso.
Houve violência, alguns foram chutados, uma mulher muito gorda foi chamada de Baleia e recebeu um cassetete nas costas. Corríamos.
O fotógrafo congelou em sua câmera golpes e hematomas.
Acho que ele ainda não sabe, mas corremos até a calçada do Ramon, lotamos a lateral da sua casa com pobres pertences.
Os funcionários da SER IV, mais ávidos que os guardas, corriam na frente e tomavam dos ocupantes verdadeiras fortunas: leves troncos e sacos de lixo.
A Guarda chegara às 16:00 ou pouco mais. Já era quase seis na calçada do Ramon.
Eu com o colchão de tia Maria, Bruno e Inaldo com panelas e colchões.
'Liga pro Ramon' - um disse - 'Vamu deixar as coisas aí dentro'.
Sai, da casa do Ramon, sua prima, a ruiva Marina.
Ela me diz que o Ramon não tava e deseja que eu fique bem.
Naquela calçada, acuados pela Guarda, esperamos.
Logo era a hora e vez do aparato de repressão OFICIALMENTE particular: a dona do comércio em frente ao Ramon ativa a escolta armada. Passam uma viatura e uma moto, o motoqueiro pede reforço.
'A Guarda já foi' - diz alguém - 'É hora de voltar'.
E no retorno, um vizinho de frente do Ramon, senhor de cabelos grisalhos, se aproxima com seu celular e me bate uma foto. Dando às costa em seguida, sai.
'Senhor, pra que minha foto, senhor?'
Tanto ele não me responde, quanto sua esposa o repreende, bem como tinha tarefas mais dignas a realizar. O deixo com desdém e aponto para o Bruno, o Inaldo, a Tatiana e a Thalita - 'Foi aquele ali. Mais enojante que a soberba policial é a ideologia da classe média'.
'Minha mãe mandaria a polícia atirar' – comenta, convicto e triste, Inaldo.
'Minha mãe morreria de medo e trancaria as portas' - afirmo e o Bruno diz o mesmo.
Em tempo: Ao falar com a Marina a mãe do Ramon me viu - não sei se reconheceu - bem como seu padrasto. Preferi voltar a um local da calçada onde não me vissem, vai que vai...
Ainda vimos um menina, minha idade, com um filmadora, em frente sua casa, sorrindo:
'Faz posse, Inaldo, estamos diante das câmera.
------------ PORRA, TO MUITO PUTO, PRECISO PENSAR, DEPOIS CONTIUNUO, A ESTÓRIA ATÉ AQUI PASSOU SÓ UM POUQUINHO DAS 6... CHEGUEI EM CASA 00:35....
Ah, saiu a matéria no povo, confiram, Primeiro Caderno, página 4: FAMÍLIAS DESOCUPAM ÁREA VERDE - é hilário. Acima ainda consta mais uma ação de mais uma regional.
.......................................depois eu continuo..................................

[david albuquerque de oliveira]

sábado, 16 de agosto de 2008

"A VIDA SEXUAL DE IMMANUEL KANT"


Meu analista — é, cara, eu tive um analista: pode mangar à vontade — me falou desse livro. Ultimamente me sinto roubado sempre que ouço dizer que alguém teve uma boa idéia. O Machado de Assis, velhinho escroto, tinha razão: na cabeça da gente os sacanas são os outros.
Mautus Fidélis andava comigo de braço dado no meio das maiores multidões como se estivéssemos em Istambul ou em Alexandria. Como acontece com determinadas composições da música erudita, a voz dele diminuía e aumentava de volume quando menos se esperava. Ele me contava as suas coisas espantosas (mas depois de algum tempo caras como Mautus, mesmo sem perder o seu magnetismo maligno, se tornam espantosamente maçantes) não sei se mais difíceis de acreditar quando eram mentira ou quando eram verdade. Da última vez ele disse que ajudara a cavar o túnel dos caras que roubaram o Banco Central e que fumava lá dentro usando batom.
— Ainda acham que tinh’u’a cuiã no mei dos cara, ó?
Mautus gostava de falar como malandro e de tirar onda de malandro, como todo bom otário enrustido. Mas com a fama dele não duvido de que ele fosse mas era a mulher mesmo, no meio dos caras. Não é que o filho da puta andava ajeitando o meu cabelo e a minha gola e falando alto quando uma mulher chamava a atenção dele, mas ele não chamava a atenção dela:
— Eu gost’é de u’a mulher vagabunda!
Não existe filho da puta discreto.
Praça. Os velhos impotentes negociavam afrodisíacos diante da banca de revistas e vídeos pornográficos de segunda mão (é sério: a banca não tinha nada além disso e atraía os velhos como um pedaço de carne crua atrairia moscas e cães pelados) e riam às nossas costas depois que passávamos lembrando que o Luiz Gonzaga dizia que no Ceará não tem disso não, tem disso não, tem disso não. Carros de som como minaretes móveis — 17:00h — davam os últimos anúncios de cortes e tecidos, os andinos tocavam Emoções, adolescentes salivantes com o rosto espinhoso como um cacto vestindo fardas do Liceu com furos de guerra e usando broches de fralda nas orelhas paravam diante da projeção pública e ilícita de um filme pornográfico (a televisão, a fita, o aparelho cassete, os cadarços do sapato, os conselhos e as informações do camelô estavam à venda) e as mentiras do Mautus ficavam cada vez piores.
— O que você fez com o dinheiro, então?
— Doei 90% da minha parte.
Deve ter doado 20000l de uísque às filiais do AA, mas é claro que ele não estava no meio da coisa. Suas guimbas marcadas de batom com a impressão tensa dos seus lábios foram jogadas em outras sarjetas.
Diante do José de Alencar, entronado e sempre triste — o nosso sr. Vitor Hugo — no seu bronze, sob a constante ameaça dos pombos, Mautus riu e não me explicou por que. Dizem que os doidos é que riem sem motivo; minha teoria é que vivem pensando coisas engraçadas. O que me preocupa é que isso em acontece o tempo todo. Mas, depois de rir sem razão, o cara ainda começava a gritar, do nada, coisas sem sentido, só por provocação gratuita não sei contra quem.
— Por que não ouvem o homem nu? Por que não deixam o homem nu falar?
Aquele preceito do J. J. — Nunca conheci um chato — parecia legal, mas não era tão fácil de seguir, ao menos não de cara limpa.
Conheci mais de perto o Mautus quando investiguei por conta próprio — e sem nenhum resultado aproveitável — a morte de um jovem chamado Daniel, no final do século XX. Daniel se unira a um bando de anarquistas que planejava uma coisa grande. Ele morreu com um tiro na cara e 50kg de cocaína debaixo da cama. Uma história complicada que a polícia não queria explicar e que eu, por minha vez, tornei ainda mais confusa (graças à ajuda de colaboradores como Mautus). Mas meu principal objetivo na época da investigação, entre 2003 e 2004, era ficar longe de casa, correr todos os perigos sem pensar em nada, consumir sem perguntar o que era qualquer coisa que me oferecessem e agir como se não soubesse o que estava fazendo. Porque, entra 2003 e 2004, eu queria morrer: foi um dos períodos mais divertidos da minha vida… até que o dínamo emperrou.
Essa maldita década está acabando com todos nós — O último remanescente do século XIX — e eu fiquei foi puto mesmo quando ouvi isso do Urano… porque tinha um pouco de verdade: ainda sou um sujeito pesado e as pessoas acabam se afastando. Principalmente as mulheres: não vou mentir.
Eu via o que a década estava fazendo a Mautus e imaginava ele daqui a vinte ou dez anos: como uma bicha velha e descarada, oferecendo suas drogas sintéticas de quintal a qualquer cara que passe pela sua esquina, menos por dinheiro que pelo prazer de fazer negócio. Como uma bicha velha. Eu conhecia o tipo e seus papos furados. Quem nunca foi alvo da conversa mole desses caras em algum momento da juventude? Me lembro de certa vez: eu estava sentado num banco à espera não sei exatamente de que mas muito provavelmente de nada quando um tipo desses, alto, pesado, desengonçado, de bigode sírio-libanês e beiços moles de camelo sedento, me abordou. O cara enfrentava às cegas angústias, frustrações, riscos exagerados que não dá pra calcular direito, mas quando dava certo tudo parecia valer a pena… ou era aí que começavam os problemas. Outra pessoa: de costas pra ela você sente alfinetadas magnéticas na espinha.
— Moreno 25?
— Com’é que é?
— Moreno 25. É você, não é?
— Nunc’ouvi falar, não.
— Marquei com ele pelo telefone e ele disse que ia me esperar nesse banco aqui. — A essa altura ele já estava sentado ao meu lado: tinha um modo de se insinuar semelhante ao do Mautus. — Ele também disse que ia vir vestido como você. Tem certeza de que ele não é você?
Um filósofo perspicaz teria me deixado em dúvida, mas não era possível me confundir com um Moreno 25. O velho devia ter feito um desses contatos pela internet (se não fosse um tremendo cara de pau jogando verde) e, se a história fosse mesmo verdadeira, dava pra entender o que tinha atraído ele. 25 devia se referir a idade, mas eu não resistia a pensar em termos de número de série, como no caso de carros e programas de computador. Moreno 25, desde que existisse e não fosse um mentiroso (foi por isso que eu fui confundido?), devia ser um surfista bronzeado, musculoso e presunçoso que cobrava de R$ 50,00 a cem a hora ou envenena as bebidas. Não dava pra confundir comigo: um tipo que entra em qualquer confusão por causa de uma nota amassada de cinco.
(…)
Seria triste ver Mautus cumprir aquele destino, embora ele merecesse coisa pior e talvez até pedisse por isso.
— O que acha de Kant?
— O mesmo que acho de Descartes.
Preceito 171: sempre que quiserem sacanear você, dê o troco na mesma moeda. Kant era um cara triste que escrevia livros que ensinavam a correção da sua tristeza; está morto há mais de duzentos anos e o pessoal continua rindo feito hiena e se matando por besteira. Um epicurista, ele, no sentido exato da palavra: não ejaculava e andava com medo de suar, segundo os biógrafos, porque tinha medo de deixar vestígios e se desperdiçar além do necessário. Também pode ser que ele fizesse tudo isso e recolhesse com uma esponja ou com a palma da mão pra beber tudo de volta.
— O que você quer com Kant e a minha opinião sobre ele?
Se sentir o máximo comendo um pastel de carne com caldo de cana no meio de gente apressada, caras certos de que andar pra frente levará eles sempre adiante e de que depois de 60 segundos sempre se terá passado um minuto. Mas aí parou perto da gente um táxi à espera: ninguém é mais sacana do que um taxista sacana, a não ser um taxista sacana bêbado numa terça de carnaval buzinando pra qualquer coisa viva que tenha um buraco porque ele quer transar e seria capaz de dar em troca disso uma longa viagem rumo a lugar nenhum na bandeira 2. O cara estacionou a porra do táxi ouvindo um disco do padre Zezinho. A velha canção que todo mundo conhece falava de uma nova humanidade cristã, maridos e esposas fiéis no casamento, gente que se casa virgem e se considera de porre porque bebeu meio copo de cerveja e começou a rir e por isso para, pessoas que se perdoam antes de dormir e filhos sempre de bem com os pais que dormem antes das dez, acordam antes das seis e nunca assistem filmes impróprios e sobre tudo isso o Z pedia as bênçãos de Deus pra que se tornasse assim e assim permanecesse. Por que é que na minha cabeça — e não na dos outros — eu pensava que Kant, um sujeito que a gente não consegue ler sem começar a suar, como se lutasse contra a prisão de ventre, se dobrando em dois sobre a privada, e quando chega na página três já se passou meia hora, um cara que não batia punheta com medo de se desperdiçar tinha tudo a ver com isso e com o sorriso de verme dentado, uma constelação de cacos amarelados, cheios de pontas imprecisas, no rosto mole e enrugado do Mautus?
— Eu sempre tive uma dúvida — ele disse. — Por que é que tantas mulheres saem de casa sem sutiã nos domingos?
Justamente no dia em que todas as partes do corpo imploram por misericórdia ou por uma morte rápida, mas aquele não era um domingo: sentados ao pé da grade lateral do teatro mulheres cobertas de fuligem amamentavam seus filhos cobertos de fuligem com as moscas disputando o mole dos seus olhos baços e um pote vazio e descascado de margarida mal forrado de centavos velhos e os tatuadores mostravam os seus catálogos. Aroma de ervas estranhas por todos os lados. Mautus, Z, Kant. O Centro sempre me deixa super-excitado. (…) Mesmo quando parece que não tem ninguém, como nas noites em que a gente vê os preás pulando de um lado pro outro, eu sinto uma constelação de olhos de gato raivoso se abrindo em todos os cantos escuros. A hora boa — descobriu Urano — em que as moças dali cobram pouco pra mostrar os seios. Os travestis (praça das Crianças) já andam com os seios nus porque a propaganda é a alma do negócio. Nunca me esqueço de um que tinha o cabelo cortado como o meu, bagunçado como o meu (um ninho de rato, diz a minha mãe) e, como eu, meio calvo e com a barba por fazer, espetando: tinha seios de adolescente, mas seus olhar de olheiras fundas fuzilava metalicamente e sua cicatriz de navalha aberta do canto da boca até a orelha esquerda fazia qualquer um recuar como diante de uma maldição de encruzilhada com velas acesas e cabeça de bode.
Eu sentia esse mundo oculto sob a casca como um sonho salvador. Em algum lugar a embriaguez e a náusea deviam ser possíveis, mas tudo que eu tinha eram as dúvidas idiotas do Mautus, Kant e as canções de Z. Preferi até a última vez em que, numa casa desconhecida em que nunca mais pisei, fui parar com a cara numa privada — o pior lugar pra ver as cores explodindo e sentir os ponteiros do relógio girando em órbita elíptica — sob a assistência prestimosa do Ibrahim. Eu queria era correr, deixar o Mautus fingindo que se perguntava o que tinha feito quando na verdade estaria mas era muito feliz por ter deixado alguém maluco, mas o cara exercia sobre mim um magnetismo malévolo de que também se orgulhava, o mesmo tipo de magnetismo que me arrastava, madrugada adentro, feito um zumbi, pros piores endereços e não lugares, em busca de qualquer refugo mórbido que me custaria horas de arrependimento.
— Olha. Precisa me responder não. — Ainda se referia aos sutiãs que os domingos engavetam ou estendem no varal junto às calcinhas floridas. — Mas, como escritor, era sua obrigação saber disso.
— Eu não lhe respondo porque não sei mesmo, sacou?
— Fica calmo.
— Mais calmo que eu impossível.
O que mais impacienta um cara nervoso é ninguém acreditar que ele está calmo quando ele diz que está calmo.
— Olha. Eu tenho o que você precisa…
— Me procure cinco anos atrás e talvez eu aceite.
Eu estava com medo de tudo ao meu redor. Despertara, lúcido demais, no meio da viagem, dando de cara com todos aqueles que eu gostaria evitar, e me dera conta até dos perigos que as pessoas não viam. Porque estava dentro de mim e dentro delas. Mautus, o mais orgulhosamente cínico de todos, capaz de viciar qualquer rapaz certinho até o ponto de ele roubar a bolsa da própria pobre mãe e começar a fazer propostas a bichas velhas, talvez fosse o menos perigoso, o único que não ia desabotoar a camisa e mostrar um cinturão de explosivos plásticos e um relógio em contagem regressiva marcando 00:03, com o sorriso de quem já venceu. O único. Eu estava tonto e as têmporas não agüentavam mais a pressão dos canos, mas talvez eu estivesse seguro.
— Você precisa da solução, mas é agora mesmo.
O que ele ia fazer, me oferecer suas ampolas, mostrar o seu pênis ereto pra sacar a minha reação?
— Amanhã eu lhe empresto a Crítica da razão pura.
Triunfante o seu olhar. Muito esperto, o sacana…
— Eu já li.
Preceito 171…
Pedi um pastel de carne e um caldo de cana na conta do Mautus. A partir de hoje, vou cobrar pedágio de todo mundo que quiser me sacanear.

[airton uchoa neto]

ZCI


ZONA DE CONVERGÊNCIA POR INTER OS TRÓPICOS triste trópico UM EQUADOR NA PARALELA círculos polares CONSTELAÇÕES-ESFINGE a devorar decifradoras DEUSAS DAS GALÁXIAS TÃO FELLINAS a se despedir do grande mestre NO ZÊNITE relampejos nos olhos do bardo TROVOADAS DE TUPÃ NA FORTALEZA CIDADE marteladas de thor noite afora RAIOS NA MADRUGADA AO POETALCIDESPINTO [mal] [ditos nas trevas emudecem à despedida VAMOS BEBER SUA POESIA antropofagizar seus criptos PROFANAR SUAS OBRAS qual escafandristas submersos TRANSVALORAR SUA POÉTICA sitiar suas fronteiras DIALOGAR COM SEUS SONHOS DALÉM MONTES paralém de santana de seus verdes abultres SUAS COLLINAS & ENCONSTAS vamos celebrar nosso poeta bendito mal] [dito

[dedham califa]
bebendo o homem nas madrugadas em não lembra-do lugar

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A LIQUIDEZ DO AMOR


Na LanHouse, Pedro logo viu os dois, a duas cabines da sua, enquanto sentava e digitava sua senha de acesso com as mãos trêmulas. Quando ia verificar a terceira caixa de e-mails percebeu o ruído dos beijos que os dois trocavam, com lentidão e muito chamego. Franziu a testa de leve, a princípio. Nenhuma mensagem. Essas manifestações de afeto, segundo acreditava, cabiam melhor na intimidade incompartilhável dos dois. A intimidade que ele não partilharia mais. Um mês e nenhuma mensagem. De instante em instante, os dois ao lado repetiam a cena: cinco ou seis beijos solenes e ruidosos. Quase já se incomodava. Na verdade, exasperava-se, mexendo-se impaciente na cadeira, sem parar com o mouse. Mas não podia não entendê-los, no mergulho cego de sua paixão. Pedro não podia odiá-los. Talvez, aliás, sentisse inveja de tantos carinhos assim, explicitamente intensos e displicentes.
Quantas indecências e absurdos não fariam aqueles dois, então, entre quatro paredes? Sabia daquilo tudo, vivera também aquela cena. Quantas seivas e arrepios não correriam por suas peles e extasiariam suas almas? Olhou com o rabo dos olhos. Ele tinha uma tatuagem no braço, um nome de mulher que, não sabia por quê, não parecia ser o dela. E era feio, mas extremamente sensual. Um cafajestezinho. Pediu para o funcionário acrescentar mais meia hora de web e sua voz era pachorramente arrogante, o que fez Pedro odiá-lo mais. Ele, tão onipotente ali diante dela, ele, que era só mais um que vomitava e chorava quando tinha pesadelos, dentre alguns bilhares de humanos. Mas foi exatamente ele, com aquela tatuagenzinha ridícula no braço, que conquistara aquela menina. Fizera o que não fez Pedro, com suas mãos sempre a tremer.
– Seja homem!
Foi o que um dia ela gritou na sua cara, sem mais nem menos.
Adriana e sua franqueza. A outra, na cabine ao lado, certamente era uma lunática também, tal como Adriana. São todas umas loucas. Aquela ali, via-se pelos olhos, enviesados, a mirar múltiplas direções, não podia ser muito normal. Sem falar que trepava com aquele sujeitinho...
Percebeu que assistiam a um campeonato de esgrima, o que, para ele, parecia algo extremamente bizarro: como é que homem e mulher decidem se amar vendo um campeonato de esgrima numa Lan House? Talvez aqueles dois ali nem observassem direito os movimentos medidos na tela. Talvez a mensagem contivesse vírus extremamente potentes que foram prontamente identificados pelo provedor e instantaneamente eliminados, juntamente com a própria mensagem. Sim, certamente Adriana lhe escreveu uma declaração de docilidade, quando tomava umas taças de Riesling ao som de Carlos Gardel: Não vejo a hora de te ver e te tocar, Pedro querido. A distância destrói minha alma... E bobagens afins. Mais beijos sonoros. Aumentavam em número. Pedro, mais e mais nervoso, sentia estalar-lhe na ponta da língua um “dá um tempo” mal contido.
Ai, ai, honestamente, Pedro, aquela égua caía era na esbórnia, com mil homens. Foi a conclusão certeira, quando começava a digitar o e-mail para ela, certamente mais um dos muitos sem resposta. A desgraçada. A última coisa em que pensaria era ir numa LanHouse dizer amenidades para ele, um tolo. Para deixar de ser idiota, patético, imbecil. Que vírus merda nenhuma, ela tava se lixando pra ele. Adriana era uma amazona, sempre foi. Veio falar com ele só para pedir um cigarro, na grade da piscina. O que podia esperar mais? Uma nadadora que fuma? ele perguntou, naquele começo de noite de cinco anos atrás. Começo de seu fim. Perguntinha idiota, foi o que o olhar dela respondeu, enquanto acendia o cigarro. Mas depois vieram tantos momentos, tantas trocas... Tudo perdido. Foda-se ela, então. Isso não se faz, Adriana. Que morra com o pulmão necrosado. Como você pode me abandonar? Que se sufoque de fumaça. E enquanto isso, os dois ainda ali ao lado, a insistir nas melosidades. Aquelazinha ali certamente era tão puta quanto Adriana. Mil juras num instante e depois, toma, corno! Mil apunhaladas. Bem feito pra ele. Por que ele insistia em ser daquele jeito? Viscoso, é o que era mesmo, bem dissera Adriana uma vez.
– Deixa de ser viscoso, cara, me deixa...
Era uma lesma, mesmo. Um verme, a tremer de desespero diante da ausência de e-mails dela. Como é que ele não tinha a dignidade de ignorá-la de uma vez? Grande cachorra. As duas. Adriana e a lunática da cabine ao lado. E o outro, também um verme, com aqueles beijinhos também viscosos. Vai, besta, continua assim que você vai ver o que é bom pra tosse. Pulou para o programa de comunicação imediata, a fim de ver se ela estaria conectada. Não estava. Claro. Honestamente, Pedro, àquela hora ela estava curtindo, bebendo e fumando, a nadadora de araque. Só pra desfilar de maiô pelo clube e fisgar os bestas. Na cabine ao lado, mais beijos sonoros. Impacientava-se Pedro cada vez mais. Sussurrou pela terceira vez um viado cheio de rancor contra o cara da tatuagem. Com o ódio que sentia por Adriana seria capaz de dar um tiro naqueles dois. Assim as merdas acontecem. Tudo acabado para ele. Não podia mais amar aquela cretina, tinha que esquecê-la. Tinha que tirá-la da cabeça, como quem enfia a espada até o fim no peito do inimigo. Só danos, pesando aqueles cinco anos. Colocando os cinco anos numa balança, se pudesse voltar àquele clube, na grade da piscina, daria o cigarro e diria “agora enfia no cu, sua égua”. Adriana, sua maldita, o que foi que te fiz? Eu só te amei...
E enquanto seguia choramingando Pedro, o viscoso, na cabine ao lado um touché interrompia o milésimo beijo do jovem casal.


[ceLLina muniz]

sábado, 9 de agosto de 2008

OS DOCUMENTOS Ka: I & III


A DISCIPLINA K: PROGRAMA CONFIANÇA CEGA

Ouvindo falar sem prestar atenção sobre filmes lentos de países fodidos que ele poderia assistir sem legenda só pelo prazer de ouvir a música de vozes que não lhe diziam nada, como se estivesse cercado por fiéis no exercício dos seus dons de línguas, caso isso fosse um prazer. Mas o sujeito que se submete a ressacas e sai por aí experimentando substâncias estranhas sente prazer com coisas estranhas e dorme pesadamente onde nenhum ser humano normal conseguiria tirar o cochilo mais leve. — Pensa que eu tou ouvino o que tu ta dizeno? — O galo cantou. As vozes continuaram porque os seus ouvidos eram um acidente e a gente sabe o que dizem dos incomodados. — Até os retro-vírus estão tomando uma posição. — Era uma voz de mulher.
— O que eu queria saber mesmo era por que e sobre o que os retro-vírus se posicionavam.
— Posso te ajudar nisso não. Vai ter que perguntar a quem disse.
Parecia uma conversa ouvida sem querer de uma mesa pra outra com o barulho do trânsito do lado de fora. De repente ele acordou no sofá desconhecido de uma casa estranha, sem saber se ao menos o galo tinha sido real. Basta fechar os olhos, deixar que eles, olhos, se fechem com o próprio peso das pestanas, pra que outras vozes pedantes comecem a conversar assuntos disparatados que só os inteligentes entendem.
— Ora, você dormiu no sofá de um cara que não conhece. Se preocupe não. Se ele quiser falar mal de ti, nada vai impedir.
Por alguma razão prefere o rótulo de otário que lhe deram na rua, pelas costas, e a indiferença dos palestrantes à falência de sua vigília. Porque o espírito está pronto, mas a carne… O pior foi achar que ouvia os gemidos de gente transando nos cômodos, achar que o mundo era uma grande festa para a qual não tinham convidado ele, se aproximar das paredes e não ouvir nada além dos rumores próprios do vazio e não se sentir melhor por ter perdido a esperança de estarem fazendo alguma coisa às escondidas.
— Nem vale a pena.
— Então parou?
Duas frases que, em algum contexto, fizeram sentido. Aquele jeitinho feminino dela — “Nem vale a pena” — de tomar decisões! Mas ela não podia estar lá, e não estava lá mesmo.
— Eu não vejo ela faz um tempaço. Pensava que tivesse esquecido.
— As coisas não se esquecem, não. Se escondem. Mas acho que o que você viu foi real e você só não sabe interpretar. Já ouviu falar dos K?
— K?
— Os russos pronunciam A. Já ouviu alguma referência?
— Nunca.
— Pois se não se esconder a tempo vai ouvir falar muito sobre o assunto.

— Senhores, as piores épocas são aquelas em que ninguém percebe que tudo está prestes a desabar e, mesmo que soubessem disso, estariam se lixando. Os que identificaram épocas como essa com os dias de hoje estão lamentavelmente… corretos.
O soldado, mal sentado numa cadeira de escola primária, levanta só o braço, quando deveria marcialmente se levantar inteiro, o que não pôde fazer exprimido daquele jeito.
— Desculpe, senhor, mas creio que foi sempre assim.
O mais constrangedor era a timidez culpada de efebo, que seus colegas de caserna conheciam tão bem.
— O senhor é jovem.
O superior se aproximara a passos lentos e balançava a cabeça numa afirmativa cínica — “Deus, foi mesmo esse mundo perverso que fez dos meus soldados sujeitos que defendem o tempo todo o próprio cu e só eu sozinho tenho que pensar na pátria” —, prolongando as vogais enquanto falava — ooooo seeenhooor é jooovem — e fazendo sua constatação pesada cair sobre as costas do soldado.
— Soldado… só para começar… onde está sua venda?
Ninguém sabia como fora parar ali, porque seguiram as instruções de permanecer com os olhos vendados do QG ao campo de treinamento. A instrução era não tirar a venda antes da ordem de um superior, pouco depois sucedida de uma ordem de pôr a venda de volta sobre os olhos.
— Eu… tirei… senhor.
— O senhor… o quê?
— Tirei… senhor.
— E por que o senhor… tirou… soldado?
— Porque eu queria ver… senhor.
— Bravo, soldado. Quero ver é o que o senhor fará quando não tiver olhos ou quando os olhos forem inúteis.
Ele não parava de pensar, o superior: “Protegendo o próprio cu, como se adiantasse”.
Foi um mal dia de treinamento, esse do início, sob o ponto de vista dos soldados, mas o superior gostou de ter tido razão pra gritar com alguém e imaginar o cu desse alguém se contraindo como um pouco que foge.
Nos dias seguintes, os soldados aprenderam a sedução sem toque, o suborno sem dinheiro, a chantagem sem ameaças, o roubo sem objetivo e a extorsão sem lucro. Dois soldados enlouqueceram porque acharam que, com esses conhecimentos, seriam os homens mais poderosos do mundo depois que dessem baixa. Acabaram internados e postos pra dormir sob choques de insulina.
— Senhores, esse é o destino de todos que agem sem patriotismo.
— Mas, senhor, quando vamos conhecer nosso inimigo?
— Nunca. Quando o conhecerem estarão derrotados. Nossa vitória consiste em mantermos tanta distância dele até duvidar que ele exista e esquecer que ele é a razão de estarmos aqui.
O soldado que criou problema no primeiro dia acabou se revelando o melhor nos treinamentos e nas aulas teóricas. Ninguém estranhou que parasse de dormir no alojamento e que o perfil de sua nudez tenha sido visto projetado pelo lampião na lona da tenda do superior, ao lado da semi-nudez peluda e superior desse último, que nunca descalçava as botas nem tirava o chapéu de campanha.
— Sabe, soldado, adoro me sentir um espartano de jarro.
O soldado ficou calado, porque preferia se sentir um ateniense… de pires.

— Essa é a história de um batalhão secreto formado por cara que, como você, começaram com a alucinação.
— Por que esse exército foi formado?
— Há um segredo revelado que diz que não é pra nada, e um outro que diz que a sua missão é apenas destruir a si mesmo.
O sujeito ergueu uma face iluminada — Os mais nobres guardiões. Quero me engajar — e passou os dias seguintes com uma mochila nas costas, procurando se alistar, mas era sempre recusado sob todas as alegações possíveis e uns sacanas de farda verde-oliva que não podiam fazer nada por ele aceitaram o seu suborno inútil e deram o fora. Passou a perambular sujo e consumido ao redor dos batalhões e dos quartéis e dormia nas calçadas sob as guaritas da Luciano Carneiro. A última que eu vi ele ele fazia formação, usava uma vassoura como fuzil e os classificados como capacete da guarda napoleônica.
— Parabéns, soldado, conseguiu sua patente no batalhão especial de operações invisíveis.


RESIDUAL K

— A paz do Senhor, irmão.
Eu andava com os olhos no chão escaneando o terreno, recolhendo vestígios da História e buscando novas sinapses ou nascera de repente num mundo inédito munido de lembranças completas, como no teorema maluco do Bertrand Russell, mas aquela mão no meu ombro que parecia dizer — Te peguei — me fez despertar como se renascesse, enquanto um arranjo de guitarra de uma canção do Led Zeppelin rasgava o meu cérebro, e eu sentia que todos podiam ouvir aqueles choques elétricos ou que o som estava ao fundo, como se eu fosse um personagem numa série de televisão americana no auge de uma cena de pesadelo. — Te peguei. — De onde é que eu conhecia aquele sujeito? De onde é que ele me conhecia?
— Desculpa. O que foi que você disse?
— A paz do Senhor, irmão.
Eu estava tão desbaratado (desbaratado é o estado de espírito do cara que perdeu o rumo de suas baratas de estimação) e me sentia tão repentino e coberto de placenta que se ele dissesse que dizia aquilo porque ontem tínhamos transado, que a noite fora maravilhosa e que cumprimentava daquele jeito (muito simpático, então) todos aqueles que contribuíam para a sua saúde e felicidade sexual, eu acreditava. Embora não tivesse nenhuma lembrança de ter feito sexo com um homem. A não ser que os pesadelos não fossem pesadelos. O Ibrahim Parassé, alguém que em algum lugar existe, de mesmo, tinha tantos problemas com esses pesadelos que passou a tomar remédios pra não dormir, genéricos de anfetamina e pílulas como as que os caminhoneiros tomam, engolindo com café e coca-cola. Uma semana depois, estava tomando soníferos.
Se o Ibrahim me dissesse isso — A paz do Senhor, irmão —, eu não ia achar estranho, não, embora nunca soubesse se o Ibrahim falava a sério ou se tirava onda com a cara da gente, mas, porra, aquele cara, quem era?
— A paz do Senhor, irmão.
Era como se eu me fingisse de surdo pra sacanear o cara, mas não, eram aquelas palavras que não faziam o menor sentido pra mim. O pior é que a serenidade nos olhos dele e a firmeza da sua mão, que não saía do meu ombro, me davam a impressão muito nítida de que eu seria conduzido paternalmente ao presídio ou ao manicômio e, embora eu não entendesse nada e não soubesse de nada nesse sentido, já me conformara com o meu próprio rapto e aceitaria a validade de qualquer laudo, atestado, mandado ou ordem que esfregassem na minha cara com seus selos e carimbos.
— Desculpa. Você me conhece?
— Não. Mas você não é evangélico?
— Não.
— Pois tem toda luz.
Me senti coberto de tinta fosforescente. Tenho que parar de fingir que sou gente porque, fingindo, eu me atrapalho todo, e já que eu já ajo feito vagabundo devia também começar a me vestir como tal. Nunca sabem o que eu sou pela roupa que eu visto; me perguntam se eu sou evangélico ou — dá pra acreditar? — estudante de filosofia. Sou só um cara que não quer ser parado pela polícia porque é pardo (quanto a isso não posso fazer nada), arrasta chinela e esconde os olhos sob a pala de um boné. E olha que a garota por quem fui apaixonado de 1993 a 1995, no tempo em que as paixões duravam — Essas recordações me matam —, achava que eu ficava bem de boné.
O disco do Led Zeppelin enganchara sob a agulha do meu cérebro; a guitarra subia e descia como um mar de alfinetes e grafites e cordas de aço rebentadas.
Há muita coisa que eu não posso evitar porque ninguém pode evitar. Ainda vão me confundir com evangélicos, estudantes de filosofia e membros da casta dos comedores de cachorro, ainda vão me assaltar novamente, ainda vão querer me vender coisas até o último centavo, ainda vão me confundir com outras pessoas na rua e mais uma vez vou esperar que ninguém queira se vingar de nenhuma delas (já falei disso e não consigo evitar falar de novo: as velhas informações voltam como se fossem novas e é como se eu ouvisse o Led Zeppelin sob efeito de ácido, tocando com a ponta dos dedos a textura árida e arenosa das ranhuras que a guitarra fendia no ar) e, principalmente, sei que um dia estarei morto e que deveria bastar saber disso para beijar a boca das mulheres que eu quero beijar, mesmo que elas me detestem depois, em vez de ficar lá, tantalizado, olhando os lábios se mexerem enquanto elas falam, como invertebrados moles úmidos macios que se insinuam, se insinuam, se insinuam. Só que nem todo mundo nasceu com o talento do sr. Daud Mauara, outro cara que existe em algum lugar.
Aquele sorriso confiante, que me oferecera a glória de ser um dos seus, já tinha ido enquanto — eu olhava suas costas se afastando — a guitarra subia e descia e eu pensava na promiscuidade mórbida de cadáveres amontoados. Era só o que o mundo podia oferecer a quem não se juntasse a ele, ele pensava, e agia como se não precisasse ter medo disso e suportava heroicamente — ou como um masoquista — a mais impertinente sobriedade e o mais revoltante conformismo diante de renúncias e negativas.
Digo: cadáveres nus e despojados sob o vôo dos urubus. Os vermes saem de todos os orifícios como periscópios. O sentimentalismo das pessoas impediu que se amontoassem os corpos em lixões distantes ou… ou — ou o quê mesmo? — ou que fossem transformados em adubo e devolvidos à terra. Porque ainda existe a gratidão no mundo.
Aquele sorriso…
Renúncias e negativas…
Aquele sorriso…
Eu… via a palavra “não” em todas as lápides, cassandrianamente, e olhava pra trás, como se não pudesse acreditar que se desejasse a paz de Deus, como se preferisse uma declaração de guerra. Porque um dia todo mundo cansa de fingir. Fingir é como tencionar um músculo na brincadeira da estátua.
Essas recordações me matam…
De repente eu percebi que sabia demais sobre mim mesmo. Todos os tempos gramaticais e sentimentais de um passado não muito agradável mas convenientemente a mão se oferecia a mim como os livros já relidos de uma biblioteca que eu sabia onde estavam mesmo sem olhar pra eles. Sabia que estava prestes a chorar antes da mão no meu ombro, e que talvez chorasse mesmo no meio da rua, e justamente porque nenhum dos lábios que eu gostaria que me fizesse isso iria beber as minhas lágrimas na fonte.
Urano Porras, um sujeito de que me lembro de um modo tão convincente que a sua existência real no mundo físico me espantaria tão pouco quanto a própria existência empiricamente comprovável desse mesmo mundo físico, o que deveria ser demais pra qualquer cabeça, me disse uma vez, no tempo em que me julgava digno de ouvir suas palavras, num dia que alguém marcou no calendário e numa hora que alguém esperou marcada no relógio:
— Você deve ser o último remanescente do século XIX.
Era como se tivesse sido planejado por outra pessoa: a frase, o momento, a minha reação calada — “Olha só quem fala: toda libertinagem decadente do século XVIII me acusando de tuberculose emocional” — e a sensação de que aquilo acontecera várias vezes, como a cena repetida de um filme ou de modos diferentes em vários mundos alternativos ou mesmo em muitas épocas desse mesmo mundo. Embora eu não tivesse nenhuma lembrança de já ter morrido, não me pareceu impossível ter sofrido todo tipo de morte no abandono, e a próxima não deixaria de ser angustiante. Imaginava, pra mim, mortes terríveis de mulher e de criança em paisagens estranhas. Não me refiro às besteiras demagógicas do Kardek (eu falo mal do livro que quiser, desde que tenha lido, mas por que foi que eu li mesmo Kardek… ouvindo Led Zeppelin?) nem aos ciclos do oriente rumo à perfeição ou, melhor, rumo à nadificação: pensava em ciclos opostos, do ruim pro cada vez pior que ainda pode piorar.
De repente o Bertrand Russel fazia sentido. Eu podia ter começado a existir a partir do momento em que tocavam no meu ombro e me desejavam a paz de Deus: até então o meu corpo era um autômato, um andróide aperfeiçoado do tipo que faziam no século XVI, e naquele momento um sopro me dava a consciência. Nascido de repente e cheio de lembranças angustiosamente comprováveis, com endereços permitidos e proibidos, lugares e compromissos e pessoas e horários que me esperavam — parece que ninguém nunca é livre — e todas essas pessoas podiam pensar o que quisessem de mim sem a minha permissão. Teriam lembranças, impressões e sensações ao meu respeito onde estivessem. Ou não. Não é estranho? Você sabe que as pessoas com quem conversou, com quem foi pra cama — ontem mesmo eu vi um fantasma —, com quem brigou, com quem riu, que odiou em silêncio de longe ou de perto continuam existindo mesmo fora do alcance dos seus olhos e você até pensa nelas. Meu nome e meu rosto existiam ou existiram em várias cabeças e diante de vários olhos e associáveis a impressões digitais e numerações de RG, CPF, título de eleitos, carteira de trabalho, de estudante, de reservista (lembrança daquele dia por que todos passaram: jurar fidelidade à bandeira nacional sob o pior meio-dia e com uma gravação mofada do hino, mas a verdadeira música é a guitarra do Led Zeppelin diante de um sorriso cínico de caveira), certidões, atestados etc., etc., e esse mesmo rosto & nome, à minha revelia, já teria ido tão longe que ouvi dizer (mas assim como você não vai acreditar eu não acreditei) que uma guerrilheira das FARC tinha se apaixonado por mim. Hoje, com a correspondência rompida, ela deve achar que todos os homens são iguais e eu perdi mais uma chance de aprender a atirar e a me virar na selva. Tudo isso e mais pode ter sido previsto e calculado sob a lógica da análise combinatório e da estatística: um mundo possível que pode caber, com todos os possíveis, sobrando espaço, na palma da mão que se encheu com meu ombro — A paz do Senhor, irmão — enquanto o Led Zeppelin rachava o meu crânio e na minha imaginação o olho de vidro se aproximava vertiginosamente do meu rosto espantado, mostrando que o ponto de vista alheio que eu admirava com superioridade e em segurança na verdade era mesmo meu: eu tinha tudo a perder.
Isso até que eu acorde, repentino, em outro mundo, andando, com medo, entre garras e caninos ocultos, em noites que fingem dormir, cheias dos olhos abertos de gatos raivosos. Nunca terei mesmo nada a temer, a não ser que o LEd Zeppelin nunca pare de tocar.
A idéia do Bertrand Russell parece absurda? Ora, qualquer um que acho o Wittgenstein um cara legal tem que ser mesmo meio maluco.

[airton uchoa neto]


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O ESCRITOR BRASILEIRO (WORK IN PROGRESS)

O ESCRITOR BRASILEIRO

Uma figura impessoal que confundem o tempo todo com figuras impessoais — o sujeito bem arrumado e formal: o contínuo — e que no embate hegeliano das consciências saía sempre perdendo. Qualquer sujeito que passou a juventude transviando para se tornar um homem respeitável como se saísse de um casulo parece ter argumentos mais fortes só porque fala alto e firme e calmo.
— Quais são suas últimas palavras?
— Eu vou morrer?
— Não. Você vai ser condenado ao silêncio.
— Obrigado.
— É essa a sua última palavra?
— …
— Responda.
— Se eu responder… porra… agora não é mais a última palavra!
— Idiota. O que sai da sua boca suja não vai interessar mais; mas nada vai impedir o senhor de fazer pedidos ao balconista. A última palavra que eu peço é a sua última palavra oficial.
— Obrigado.
— Não agradeça. Faz parte da profissão explicar todos os procedimentos. Se você não soubesse a diferença entre esquerda e direita eu teria que começar por aí.
— Obrigado mesmo assim. Aliás, eu só estou dizendo, de novo, a minha palavra final: “obrigado”. Mas, antes que eu esqueça, qual a diferença entre a esquerda e a direita?
— O coração.
— E se eu fosse uma minhoca?
— Isso não lhe importaria.
— E quem disse que me importa?
— Se você perguntou, lhe importa.
—Não, não importa, não. Perguntei porque nunca me ocorreu que houvesse uma diferença. E aos senhores, porque importa saber se eu sei ou não disso?
— Não podemos processar ninguém antes de ter a certeza de que se trata de um ser humano e não de uma minhoca.
— A diferença não é óbvia?
— Ora, veja bem. O senhor foi obrigado a pronunciar sua última palavra oficial e agradeceu.
— Me livrar do peso das palavras oficiais não parece tão ruim, e se era a minha última palavra achei que o melhor era ser educado.
— Mas o senhor teve a atitude humilde de uma minhoca.
— Minhocas são humildes?
— Etimologicamente sim.
— E agora?
— Agora o senhor está liberado. Só não poderá dizer mais nada oficialmente.
— Tudo que eu disser, então, será extra-oficial?
— E anônimo, como o trabalho das minhocas.
— Ora, então por que se preocuparam tanto em me diferenciar de uma minhoca?
— Não podemos condenar uma minhoca a ser minhoca. Isso seria um contra-senso.
Começa a sentir a pele mais viscosa ao sair do tribunal onde não se viu entrando. A ordem judicial continua no seu bolso? O papel de jornal na poça que a chuva encheu. — “O senhor não nos interessa mais. Não trabalhamos com minhocas.” — Arrasta sua sexualidade úmida e ambígua e um ventre cheio de ovos que fazem cócegas como tentáculos, olhos gelatinosos que eclodirão em criaturas cegas e delgadas, frágeis e insinuantes. — “Criatura suja e perversa! Fora daqui! Meus clientes são gente de família.” — Caminha devagar, pregado na placenta do passo anterior, como se se projetar para frente fosse continuar um parto que nunca acaba ou abandonar a casca coberto de restos fossilizados.
— O senhor bateu na porta certa. O SEACC (Serviço Emergencial de Apoio às Criaturas Ctônicas) foi criado no intuito de que ninguém pudesse dizer que o Estado faz vítimas.
— Mas o senhor está me propondo o Tratamento Sono Eterno!
— Conhece alguma coisa melhor que dormir às custas do governo? É melhor do que a morte. A pessoa tem a vantagem de continuar com vida.
— Mas eu quero ser útil para minha nação!
Ele se levanta da cadeira e o seu atendente, sentado ao seu birô e protegido pelo seu sorriso de ocasião (faz semestralmente um curso de sorrisos adequados), vê o seu menino estufando um peito sem ossos com o retrato do presidente anterior ao fundo. Ainda esperam a mudança do quadro.
— Por que se revoltar contra o seu próprio estado parasitário?
— O que o senhor propõe é imoral!
O cara fica puto e aperta o play. A fita mofada dá a impressão de que tocam o hino nacional debaixo dágua.
— Por que o senhor acha que eu uso esses bigodes de Chico Mendes?
— Achei que fossem de Chico Buarque.
— Não. São de Chico Mendes. Ouviu? Chi-co-men-des. Eu sou um patriota. O procedimento que o senhor chamou de imoral é exaustivamente documentado em ofícios de látex amazônico das Indústrias Paroara S.A. Tudo que aqui se passa está previsto nos Artigos da Nova Constituição.
— Não conheço esses artigos.
— Eles não são nada óbvios. Procure alguém que os leia para o senhor.
— Um advogado?
— Um exegeta.
Os dois se levantam das suas cadeiras cordialmente.
— Volto aqui depois de ter uma interpretação clara das leis.
— Isso pode levar a vida toda, mas a decisão é sua.
— Posso apertar sua mão?
— Perdoe, mas seria antiético e anti-higiênico tocar na sua mão ou em qualquer parte do seu corpo.
O cara, que era pobre e acabava sempre empurrado a tomar as decisões erradas e mais baratas, resolveu ler a Constituição sem a ajuda de ninguém. Achou que poderia trabalhar na redação de artigos, mas um dia também quis ser roteirista de filme pornô, mas logo quando os enredos estavam sendo abolidos. Dormiu com a edição de bolso sob as mãos cruzadas e sonhou que a literatura tinha tornado ele um cidadão da classe média, que os seus amigos dos tempos difíceis chamavam ele de vendido, que só lhe restava abraçar o rancor, a solidão e a desconfiança e que morria assassinado pela prostituta e o cafetão que davam o golpe nele e roubavam seu apartamento. Quando acordou sentiu pena de quem nem todos os sonhos pudessem se realizar. Mas, quando acordou, naturalmente as leis de incentivo à cultura chamaram a sua atenção.
— Boa tarde, senhor, vim trazer o meu projeto.
— Pois não. Qual a sua justificativa?
— Hoje eu acordei e, de repente, descobri que sou um gênio.
— O senhor tem certeza de que não é um sintoma da fome endêmica?
— Sabe que eu ainda não tinha pensado nisso? Já passei fome antes, mas nunca cheguei a nenhuma conclusão decisiva e drástica.
— Pode ser que dessa vez…
— Não, não estou com fome. Tenho em casa uma maçã que deve durar o resto do ano. Sabe como é? Digestão leeeeeeeeeenta!
— Digestão lenta? Digestão lenta? Por que não procura o SEACC?
— Ora, eu já vim foi de lá!
— Por que não ficou?
— Eu não estava com sono!
— Idiota! Nunca ouviu falar como as coisas funcionam? Faça boas relações por lá e seu projeto vai ser aceito aqui!
Ele foi naquele mesmo dia. Achava que terça era um dia ruim porque ninguém com a cabeça no lugar bebe na terça, que junho era um mês podre coberto de trapos, que 10 não era o número da sorte de ninguém, que 2008 era um ano morto desde o nascimento, mas mesmo assim foi. Imprudentemente levava o seu grosso original manuscrito intitulado Eu sou a pós-modernidade, ou seja seu próprio médico e opere com talheres. Escrevera no alfabeto etrusco e a conclusão de cada capítulo dependia da leitura dos búzios.
Na repartição tinham trocado o quadro enfim. A moldura era a mesma, mas trocaram a gravura. Pra economizar não usavam fotografias, mas as caricaturas das últimas páginas da IstoÉ, porque afinal ninguém entende as piadas do Caruzo além dele mesmo. Tiraram a cara de sapo do Fernando Henrique e puseram a cara de duende do Luiz Inácio.
O cara que atendia também era outro, tinha outra idade e uma outra atitude diante do mundo: o radicalismo niilista dos saudosistas.
— O que o senhor deseja?
— Me inscrever para conseguir os benefícios.
— Pois não. Mas o que são todos esses papéis?
— É o meu romance revolucionário.
— O senhor quer ser tornar um desistente conformado sob aval e proteção do Estado e ao mesmo tempo escrever romances? Só um verdadeiro parasita pensaria assim!
— Me disseram que eu teria chances nos editais se fizesse amizades aqui.
O velho quase derruba o birô ao levantar.
— Escute, senhor. Eu sou um patriota! Está vendo essa dentadura? Sabe por que eu uso essa dentaruda?
— Por que o Costinha usava?
— Ignorante! Ignorante! E ainda escreve romances revolucionários! Ignorante! Quer mudar tanto as coisas? É porque não conhece nada. Devia ler mais a história do Brasil.
— Por que é tão importante que em algum momento um banguela tenha feito história?
— Anarquista imundo! Conhece algo mais democrático do que banguelas no poder?
— O senhor tem razão.
— Quem tem razão é o Estado.
Apertou o play e o hino das repartições encheu a sala. A fita era nova, mas cheia de ruídos metálicos como miados de gatos moribundos ou unhas no quadro negro: “Periclitan-te, esfolian-te,/ Nossa naçã-ãã,/ Huhuhuhum, huhuhuhum, huhuhuhum,/ Renasce co’o ven-to, morre co’a chu-va,/ Nossa naçã-ãã.”
— Achei que as repartições fossem construídas sob a permanência.
— A bandeira diz ORDEM E PROGRESSO e vai ser ORDEM E PROGRESSO. Nem que eu me arrombe!
Senta-se cansado.
— Vou fazer a sua inscrição, mas não lhe garanto nenhum privilégio além de uma cama macia, soníferos potentes e soro fisiológico trocado a cada hora. Documentos.
Lhes foram entregues.
— O senhor não pode falar oficialmente? Ora, mas estou perdendo o meu tempo!
— Mas eu pensei…
— Pensou extra-oficialmente.
— Mas afinal por que é que eu fui mesmo processado?
— Por usar o poder da palavra sem licença ainda que inutilmente, segundo consta no processo.
— Como eu consigo uma licença dessas?
— Esqueça. O senhor teria que ter relações estreitas com os Pra-Você-E-Seus-Pareceiros-Inacessíveis.
“Porque nenhum pensamento de reconhecida utilidade publica mandava imprimir que não fosse qualificado crime e pelo qual não houvesse de sofrer alguma pena.” Ele pensou: “É mesmo como dizia a mamãe: ‘Cave sua própria sepultura enquanto puder; que ao menos a ruína tenha sua assinatura’”.
Expulso mais uma vez e empurrado rumo a outras repartições onde funcionários entediados se divertem mandando ele e seus pares perambular em corredores bifurcados sem saber o que é direita e o que é esquerda, com uma pilha de formulários sem validade, pelo mero prazer de ver os caras rodando como baratas envenenadas. Ele aceitou empregos degradantes e sem garantia e o julgo de contratadores boçais por quem tinha que fazer trabalhos intelectuais sujos e gastou o pouco dinheiro que tinha em cópias do seu original e despesas com o correio, enviando o seu romance a distantes editoras de cidades onde, dizem, há dinheiro. O tempo passou e as respostas não vieram. Nem a mentira cordial de ter sido lido e recusado. Nada. Acabou o dinheiro. Acabou. Ninguém mais lhe oferece serviçinhos sujos: a terceirização tomou conta de todos os mercados. Acabou. Já não pode pagar pela fração dos seus menores vícios e, com os seus, se arrasta no campo onde os bêbados mijaram. Ele, a gente da sua laia e os originais recusados de todos eles se tornaram uma massa amorfa e mole de gente com as calças sujas de merda, mijo, esperma seco e menstruações velhas e de papéis umedecidos e gastos nas pontas, presos com grampos escuros de ferrugem em calhamaços que perderam as folhas do começo e do fim.

Dando laudas por doses de cana, máximas por cigarros baratos, fazendo coisas mais sujas os menos caretas pra conseguir coisas mais pesadas, vendendo até a alma por um elogio em falsete, se submetendo ao desejo guloso dos últimos homens desprezíveis e das últimas mulheres desprezadas em troca de um pouco de calor e de contato.
Sermões religiosos, discursos políticos, artigos acadêmicos, redações escolares, anúncios populares em papelão.
O repórter usa galochas de chuva pra que a viscosidade não contamine ele.
— “A ausência paterna, a falta de educação, a carência de Deus no coração dos homens, a morosidade do Estado” etc., etc., etc.
O repórter parece seguro como o religioso sacerdote que propusesse aos fiéis — “Sexo eficiente entre cônjuges para uma procriação bem lubrificada, pois assim disse o senhor Deus (…)” —, mas no começo ele estava inseguro como um contínuo promovido rápido demais, alguém que é muito bom até precisar abrir a boca, até que o poder fálico do microfone, como uma segunda personalidade a vestir, lhe deu confiança para penetrar, higienizado, em todos os lares com reportagens sobre o mundo rastejante na hora do almoço. O âncora — movimenta os braços como se segurasse um cajado — vai aproveitar e fazer um discurso político e mediúnico sobre as criaturas ctônicas e a decadência do ocidente infiel, mas, porra, quem é que não manja a lábia dos caras da televisão?

Todo mundo quer ganhar o seu Esso, não é verdade?

Mas era sempre o mesmo ambiente o que encontrava. Ventiladores lentos e um amarelo abafado que dava um sono febril. Não adiantava nenhuma providência (tudo não parece tão renovado e esperançoso quando mudam os gestores?). Por mais oficial que quisessem erguer as instituições públicas e as empresas privadas, por mais que desejem tornar cada prédio a encarnação em pedra da limpeza, da eficiência, da pontualidade, das metas cumpridas, do planejamento racional, da ordem, do padrão, da normalidade e do ideal, a precariedade sempre irá se infiltrar umidamente em tudo, e o lodo marcará de verde escuro a pele transpirante das paredes minadas de infiltração, o capim criará raízes na pedra, um canto escuro abrigará a engorda das muriçocas, os instrumentos improvisados serão encontrados ao alcance de todos os olhos dos que não podiam vê-los, dos que deviam se nutrir das ilusões de que há mundos perfeitos atrás das portas que se abrem automaticamente, os funcionários serão flagrados trabalhando sem camisa ou dormindo no almoço, as balconistas e recepcionistas deixarão de atender pra conversar entre si ou comprar produtos de beleza, os letreiros terão erros de ortografia e letras faltando, as peças sobressalentes terão cores disparatadas e remendos à vista, haverá lâmpadas queimadas e espaços escuros de vidro esfumaçado nos letreiros luminosos, e cantos para guardar tudo que nunca foi usado e os funcionários que se enamoraram farão cenas de ciúmes na frente de todo mundo.

Com as imagens do cara sem rosto — alguém tem que segurar a câmera pra alguém aparecer na frente dela — os caras rastejam ao sol sua pele lustrosa de gosma como recém-nascidos envoltos em placenta.
Os ovos de seus ventres eclodindo criaturas cegas que os devoram por dentro e muitas folhas em branco para falar sobre isso como se ainda fizesse sentido.
Fugia dos vendedores e de suas propostas de crediário — “O senhor conhece nossos produtos? Aceitamos todas as formas de pagamento — como de prostitutas pestilentas.
Sobre o birô tinha um pacote — tinha um pacote sobre o birô, sobre o birô tinha um pacote, um pacote — da Goiabada Cascão André Luiz, a goiabada cascão da família brasileira, como diz o rótulo, a légitima, made in Uberaba.

[airton uchoa neto]

SITUACIONAL 3

Jack não é seu nome. Nem Pedro mustafá baraka...
Jack faz ser tolo
Pedro faz ser besta

Ocorre uma festa. Verdejante. Todos não mais andam. Movem-se na dança.
Quisemos todos a época do vinho! Vinho tomado em conchas. Derramado ao chão. Substituto da água. O mestre de cerimônia protege o flanco direito do trono. Ocorrem julgamentos ali - pois haverá uma encenação. Atores para os vivos e para os mortos. O mestre os separa. Dentre suas funções, recebe filas de longos homens e desvairadas mulheres. Portam potes arremessados aos pés do mestre, pisando-os os tornam vermelhos.
BROTA VINHO!

Guerra de uvas nas plantações. Os de 10 anos andam nus. As meninas os emitam. Muitas meninas apenas brincam com meninas - tem mais o seu formato. E não sabem se o seu rir é também gemer. Os pivetes as caçam. Bem aventurados são aqueles a esbarrar nas pedófilas. Elas os descomem...

Bem aventurados sejam os viventes daqui.
Anuncia o ‘VENHAM A MIM’ - É DO MESTRE QUE TAL SE ESCUTA.

O último, dançado de cócoras, se vai...

Uma pregação em sintoma de festa. Arribam 758 mulheres - número convencional e exato. Esfregam-se. Aponta uma como viva. Outra como morta. Rege o mestre...
As vivas ganham brindes². Das mortas não se fala...

Nas margens da dança. Se orgia. Se renasce. Há vestidos decotados desbotados. Meus sorrisos indignados. Muitos se desfolham. Conversa-se entre mentes. Fala-se de debates e se rir da ética. Algum puxa certo sotaque. Parte o acompanha. É na noite que tudo subsiste.

Dialogando com Emanuel (nome apenas usual) o homem ficou do lado da praia. Era da noite - meu encanto, quase falava Emanuel (nome apenas usual)
‘tenho retórica das suas horas. E caminho por dentro dos seus vales. Se nas noites me descubro - tenho o luxo da preguiça. Toda às vezes, no conhecer de uma mulher, a pergunto por seus desejos. E se cumprem na hora das sombras das luzes’
‘verdade, Emanuel. Como desgostar?’

Entoam-se múmias quando se sustenta decoro. São todos nuns. De um por um o festejo verdejante progride. Pornogra-se...
E corpos se entulham.
A exaustão vem com um semana velha de revezamentos. Aproveita-se.
Haveria mais festa - uma pausa mais longa em nome da cruz da mãe do mestre. Mesmo seu pai se espera...

Donde caem chuvas. Algazarra perigosa. Uma anã dá o tom. Mãos nas cabeças. Grito sobre a ponte. No infinito silêncio das cores a ecoar.

O homem-bolha insurge
‘FORMALIZADOR E SENSATO ÚLTIMO-HOMEM! ÚLTIMO-HOMEM POIS DOU-TE UM NOME, MONTE DE RAZÕES. O MERECE! TEUS DESGRAÇADOS TE SEGUIRAM. AGORA CHOVE HOMEM! É FIM! É FIM! HOMEM, MULHER E MENINO SEM TRATO, SEM VERVE E SEM SUSTÂNCIA! TODOS BATIZADOS E NOS DOGMAS OPNIOSOS! VÊ, SE QUE DESCEM EM FOGO-BRASA COMO TU! SÃO AINDA PIORES’...

Invadíamos eu e você... e nós...

[david albuquerque de oliveira]



MEU ENCONTRO COM DOSTOIEVSKI

ENTÃO, subitamente, vi-me ali: entre mãos leprosas e risos engasgados, entre cheiro de bosta e aroma de leite quente, entre carícias de veludo e unhas de gatos com rancor, ali estava. E em dezessete dias morreria. Morria, sim, sabia. A cigana de olhos vazados e dentes quebrados me disse, enquanto o anão puxava a ponta de meu vestido e suplicava por cochichar segredos indizíveis. Dezessete dias, minha santa, anunciou.
ENTÃO, já longe de toda aquela algazarra, distante de todo aquele burburinho, só havia o mar. O mar e a noite. O mar na noite. A noite do mar.
– É assim... – ele disse. Fez pausa e prosseguiu:
– Viver às vezes é tão bom que dá vontade de morrer.
E só olhava para os próprios passos na areia da praia, lentos, precisos. Seu semblante era sereno. Como se toda a Nona Sinfonia de Beethoven fosse inútil. Como se quarenta graus negativos fossem bobagem. Nada se comparava à solidão humana. Por essa aprendizagem, quis beijar sua cabeça calva, cheirar sua barba, tentar uma carícia impossível e sentir todo ele, ele... Tão polifônico, ele... Fiquei quieta, percebendo o mofo de sua casaca, o pó do tempo sobre seus bigodes... Fiquei quieta, e só o mar falou, as ondas na praia, nenhuma certeza além daquela – nada de coisa nenhuma pode durar.
Voltaram, ENTÃO, os dedos leprosos, as latrinas e leiteiras, o anão safado buscando em outras saias outras possibilidades, o riso perpétuo a fazer rostos se contorcerem de tanto chorar. Um gato se lambendo, candidamente. Almofadas cor de vinho para um sono eterno. Dezessete dias, minha santa, soprou a cigana, cruzando novamente por meu caminho, com um sorrisinho quase meigo. Mas isso eu já sabia. E soube também, na areia da praia de uma noite enfeitiçada e sem lua no céu: nada pode durar.
DEPOIS, trouxeram mais comprimidos e compressas. Mas a febre não baixou.

[cellina muniz]



O DIA MAIS FELIZ DE NOSSAS VIDAS (FRAGMENTO)

“esse texto é do gerson. o david conhece. eu conheço. o inaldo já viu o cara. talvez você já tenha ouvido falar dele. se não, taí o que ele pensa”
Gerson Boaventura

Cessar a existência. Desistir. Não por medo, nem por preguiça. Não de ser alguém. Não de ser diferente. Exatamente isso. Não ser.
Ter um emprego + ter uma namorada + ter muitos livros muitos discos muitos vídeos + ter uma família no domingo + o efeito do tempo = nada.
Projetando a vida do momento do nascimento, passando pela infância, adolescência, o momento atual, a vida adulta, a “idade da razão” e todo o resto que vem depois, é fácil perceber o acúmulo obsessivo e contínuo de expectativas e ansiedades, frustrações e ilusões, com raros momentos de lucidez e alguma senilidade para anestesiar os últimos dias, até acabar em: morte. Ou seja, nada.

[gerson boaventura]