quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O DISCURSO POLÍTICO DO CANDIDATO INVISÍVEL I


E pra todo lado que eu olho tudo que eu vejo é loucura. Ela está lá, fazendo piruetas pra quem quiser ver, abrindo coco com os dentes e enchendo a boca de lâminas de barbear na praça da Ferreira, está nas mensagens escritas em inglês nas camisetas, nos cartazes, nos papelotes dos pedintes calados dos ônibus, nos panfletos, no rosto desfeito dos desesperados, no rosto sem rosto dos indiferentes. Marcas escuras na pele enrugada mostram os lugares onde já houve narizes, orelhas, olhos e lábios. Restou um pergaminho manchado. A loucura está aí, cotidiana e institucionalizada, com seu discurso desconexo e jocoso. Mas, se você reclamar, os defensores do progresso e da democracia vão olhar pra você com os olhos, reaparecidos através do papiro rasgado, mais arregalados e prosélitos que você já viu, e o silêncio desaprovador deles vai congelar tudo ao seu redor, e antes que você se dê conta sua boca vai estar costurada com linha de pesca e, na ponta da linha, pendendo do canto mais torcido pra baixo do seu lábio, terão amarrado um anzol em forma de interrogação às avessas. E não vá você também cair na besteira de fazer justiça e despertar consciências, com um punhal numa mão e um consolo na outra, gritando — O homem é mortal e nasceu nu — que os tiras caem em cima, e depois que eles saírem só vai restar cinza, fumaça, carne queimada e um esqueleto agonizante querendo se levantar como se ainda não tivesse sacado o que aconteceu. Quando só restarem essas sobras inaproveitáveis e nada mais, a galera do rasga, que incentiva todo mundo que vai se foder com gritos obscenos e vaias de hiena, vai se calar, cheia de tédio. Os bem comportados que abriram as persianas vão se recolher, calados. Ninguém vai se comprometer com a revolta real e sem publicidade de um desesperado.
Meu conselho é, se você é como eu e precisar fazer alguma coisa e não conseguir desistir disso nem se contenta com as maravilhas tecnológicas de segunda mão de um desenvolvimento tardio nem é um adorador subserviente de programas assistenciais, escreva num papel quantas vezes puder, com o material à disposição, tire xérox, faça recortes e coloque dentro dos livros mais caretas das bibliotecas a frase “E pra todo lado que eu olho tudo que eu vejo é loucura”. Mas, se tiver alguma dúvida a esse respeito, ligue a televisão:
Heterossexuais monogâmicos, homossexuais bem comportados e decentes e discretos engajados na cota politicamente correta, teístas e abstêmios; nunca puseram um baseado entre os lábios tencionados, não oficialmente; nunca fizeram sexo a três ou mais, não oficialmente; nunca foram parar prostrados na privada de banheiros desconhecidos vomitando depois de um porre pra esquecer tudo depois, não oficialmente; e se não fizeram nada disso nem outras loucuras ao menos na encolha tanto pior; toscos ou bem maquiados, falando alto e de modo calculadamente emocional ou posando serenamente o discurso de intelecto ou da paternidade compreensiva (dinossauros, como aves, cuidam dos seus ovos e das suas crias), ao som de sanfonas, violinos chorosos felinos, sininhos natalinos, harpas do crente, zabumbas, coros religiosos lacrimogêneos e até da Internacional em russo ou português de Portugal ou coisa parecida, os 9 apóstolos de um Cristo demorado (eu sei: são doze, mas os custos desse evangelho são mais altos) aparecem com os cenários mais insalubres e o progresso mais esterilizado ao fundo, na televisão e no rádio, em todos os canais e estações, pedindo o voto dele, o dela, o seu e o meu porque desejam o cargo de prefeito da cidade de Fortaleza.
Por que é que eu sinto que não tenho nada a ver com isso?
Depois do almoço eu espero, diante do aparelho ligado, que alguém me faça rir, mas devem ter feito alguma coisa pra impedir os débeis mentais mais notórios e folclóricos e os extravagantes proverbiais de toda casta a concorrerem a uma vaga na câmara. Devem ter tornado obrigatórios os testes psicotécnicos e as medições de QI. Ou foram os partidos que, tarde demais, começaram a se preocupar com a própria imagem. Mas que antidemocrático! A imbecilidade confessa precisa de representantes. Como não? Bem, isso mudou, mas algumas coisas permanecem como eram; continuam dizendo com ênfase palavras como EMPREGO, SAÚDE, EDUCAÇÃO e MORADIA, pra que, diante do televisor, as pessoas comecem a salivar como cães tantalizados. Deve ser por isso que o horário eleitoral é televisionado em horários próximos aos das refeições.
Fazia mesmo muito tempo que eu não ia a um comício, ver os caras se esgoelando com um microfone na mão, muito próximo da sua boca feroz e faminta e grande demais, e com a outra mão livre pra apontar, justiceira, pra todas as injustiças sociais que param no ar, esperando ser alvejadas; suando em suas camisas sociais de mangas publicitariamente arregaçadas e com o rosto pingando como se fossem se desfazer. Eu ainda não sabia que não se tratava de suor, porque os meus pais tentavam ao máximo me poupar das verdades chocantes, o que sempre acaba sendo pior: as outras crianças contam do modo mais terrível e exagerado, com seu orgulho de traficantes de informação, tudo que os adultos ocultam dos de menor. O que acontece nos comícios — como hoje até as crianças sabem e nós, em especial, não somos mais crianças — é que a gordura animal, geralmente banha de porco, que eles usam entre as escamas e a pele que vestem pra lhes dar um aspecto mais humano acaba se desprendendo dos candidatos e atravessando os poros abertos da sua pele postiça, por causa do calor. Os marketeiros (a palavra me dá a impressão de um marmiteiro kafkiano) começaram achando que isso devia ser evitado, porque era mesmo grotesco e repugnante, até que sacaram, como os próprios candidatos, que naturalmente conhecem os seus eleitores, que a galera gostava mesmo era de ver o cara dando tudo de si no palanque.
A primeira vez que fui a um comício foi levado pelos meus pais. Era um showmício (se não me engano um conceito, pra nós, bárbaros, tão novo quanto estardalhante, naquela época) do Tasso Jereissati; o cara foi celebrado por milhares como um dom Sebastião retornado com as bênçãos do padre Cícero. As masculinidades se prostravam, agradecidas, e as vaginas se umedeciam. Eu, que ainda não reconhecia aquele odor visceral, queria mas era voltar pra casa logo, mas quem foi que disse que os adultos ouvem as crianças? Apesar disso, eu me lembro bem. 1986 foi o ano em que descobri que não vivia no Brasil: vivia no Ceará. Isso me revoltou e eu me lembro de ter protestado. — O Ceará é pobre. — Todos riram (as crianças têm que servir pra alguma coisa), dizendo que o Ceará era muito era do rico. Aquilo pra mim era um contra-senso tão grande que, revoltado, mas quase estourando de rir, fui escrevendo nas almofadas, de caneta, os palavrões que eu não sabia o que significavam nem lembrava onde tinha ouvido. Eu só sabia que me faziam rir. 1986 era um ano estranho, como deve ser qualquer período dentro de uma consciência difusa como a de uma criança: além dos problemas com a geografia, eu também não tinha uma noção muito boa de tempo e vivia cercado pelos referencias de uma passado teimoso de tecnologias e mitos atrasados que as crianças de hoje não devem conhecer. Isso me permitiu viver, pelo menos até aquele ano e o seguinte, num mundo mágico em que os Beatles ainda estavam juntos e o Pelé ainda jogava.
Uns dez anos depois fui a um bingo promovido por um candidato da bancada do Juraci, que ia se reeleger ao cargo de prefeito. Não votei no Juraci nem no seu vereador promotor de bingos, se não me engano um puxador de quadrilhas nas festas juninas, mas precisava estar ali porque a minha família tinha que ter o máximo de pessoas marcando cartões.
Até 2002, como em 1989, a política ia me empolgar como o futebol. Quero dizer, a política partidária da época das eleições. Cheguei mesmo a presenciar e quase a participar de alguns episódios toscos, típicos das disputas eleitorais de província, que acabam em tiros, chantagens, subornos e todo tipo de trocas espúrias.
Dois amigos professores, que nas horas vagas acarinhavam planos mirabolantes pra ganhar muita grana, planos que nunca davam certo, tentavam se engajar na campanha de um candidato a deputado vindo do interior. As convicções deles eram pela esquerda oficial e majoritária, mas o cara era de um partido de direita, e o dinheiro, mesmo hipotético, era mais importante que meia dúzia de convicções frouxas.
Até quiseram que eu me metesse no negócio. Eu não ia vender o meu voto nem a cacete… mas, por alguma grana, podia ajudar o cara a convencer os outros a votar nele. Porque diziam e eu achava que era bom com as palavras. Só os editores é que não pensavam assim.
Fomos à casa que ele alugara como comitê. A casa fora mobiliada com o mínimo: era o seu QG e o depósito do seu material de campanha. Todo candidato pensa no material de campanha como num investimento e, naturalmente, espera o retorno. A parte do dinheiro depositada na sua conta por grandes mãos anônimas, mãos que projetam sombras como nuvens, coloca ainda mais expectativas sobre cada campanha.
O que eu notei muito rápido foi que éramos os caras errados ali, andando como baratas tontas entre gente ocupada e convicta demais, como quem sabe o que está fazendo e que é muito importante, que ia de um lado pro outro. Nem ao menos sabíamos com quem falar. Eu, o menos empenhado e muito consciente de que não ia mesmo ter estômago pra suportar a arrogância positiva e bonachona de um candidato, fui esperar lá fora, fumando.
Quando o elegível chegou, num modelo estradeiro, possante, um 4x4 preto, lustroso, estalante e cheiroso de novo, com o estofamento impecável exalando um perfume orgulhoso, me afastei um pouco. Não queria ser visto. Se passaram uns quinze minutos (um quarto de hora nos livros antigos) até ele sair, com os meus amigos atrás dele, segurando a calda do seu manto invisível, um de cada lado, enquanto ele, apressado, nem olhava pra trás; só balançava com a cabeça sem dizer que sim nem que não. Mais simpática era a mulher dele (cumpria sua função), impressionada com um ímã, como os de geladeira, do tamanho de um tapete de banheiro, que colavam nas portas do carro: a face exposta trazia o rosto sorridente e retocado do seu marido de gravata, seu nome, seu número, seu partido e sua promessa máxima, algo como Nunca largarei. O melhor era que não sujava o carro com resíduos de adesivo.
Esses caras, os candidatos, são ao mesmo tempo muito práticos e muito malandros. Esperam que você diga o que tem a oferecer, mas não perguntam o que você quer em troca. A não ser que esperem tirar de você além de mão de obra, se você tiver algo muito interessante a dar. Isso sem nunca tirar da boca o seu sorriso confiante, a sua simpatia calculada de réptil. Pois, como todo mundo já sabe, que nem nos seriados americanos antigos sobre invasões alienígenas, candidatos são répteis vestidos de uma pele humana deselegantemente tensa ou desconfortavelmente frouxa, diariamente trocada pra não apodrecer sobre suas escamas. É incômodo, mas os répteis já estão naturalmente acostumados a trocas periódicas de pele. Mesmo o inconveniente de isso aumentar os gastos da campanha (os comícios fazem com que tenham que trocar a pele umas três ou quatro vezes num mesmo dia) significa pouco. Os candidatos, em especial, são répteis antigos, sobrevividos de eras passadas e possuidores de características comuns a mamíferos, como a reprodução vivípara, peixes, como a capacidade de respirar de baixo dágua etc. Como as pessoas não sacam muito de répteis, a eles acabam se misturando, nos períodos de pleito, veteranos anfíbios, proto aves, mamíferos da era glacial e outros.
Um dos meus amigos professores trabalhou de graça pro cara por algum tempo, até que o seu empenho lhe mostrou o quanto ele valia. Esse meu amigo realmente merecia o cargo: passou a defender o seu candidato como um dogma religioso. Mas não se engane; não era um otário nem um deslumbrado. Era um tremendo de um malandro, bem menos embora do que ele mesmo considerava. Ajudava ele o fato de ser especialista em jacarés e até se comportar como eles. Fazia anualmente o censo da população crocodiliana da lagoa da Parangaba.
Eu mesmo, nã, nunca mais me aproximei disso.
Devo confessar, porém, que já estava calejado. Em 2000, quando o Juraci se reelegeu a prefeito de novo, eu vivia com a minha primeira mulher, Nilaiáli, e meu enteado. Ela tinha mesmo muitas qualidades, mas era de uma bondade sem medida, uma bondade pouco inteligente que, como diria Baudelaire, pode causar ainda mais males que a maldade calculada. De vez em quando, cheia de boas intenções, ela tinha grandes idéias ruins, e uma delas foi fazer eu me oferecer como cabo-eleitoral de um candidato a vereador, se não me engano aquele que prometia que ia, enfim, institucionalizar e tornar obrigatório e gratuito o Teste do Cuzinho pra menores de 18 anos nos hospitais conveniados ao SUS.
Imagino que o cara nem tenha sido eleito. Encontrei ele no quintal da casa grande onde ele estava recebendo. O quintal era escuro à noite, cheio da música medonha dos grilos e de gatos traiçoeiros brilhando seus olhos de farol e crepitando as folhas. O ambiente perfeito pra aparições inexplicáveis, mas no alpendre iluminado eu me sentia mais seguro, até um pouco entediado.
Ele sentava na cadeira maior, naturalmente, uma cadeira velha, de palhinha. Nós outros sentávamos em bancos toscos, no chão ou ficávamos de pé, tensos. Ele, gordo e esbaforido, parecia cansado daquela gente da periferia, tão ignorante e suja aos seus pequenos olhos opacos. Eu não sabia o que estava fazendo ali e olhava pra ele com o mesmo desprezo, mas ele desprezava com tanta experiência — um desprezo eficiente que quase não gasta energia — que nem era capaz de perceber o desprezo alheio. Curiosamente ele e eu éramos os únicos que não simulavam sorrisos constrangidos.
Ele era um anfíbio de olhos aquosos, provavelmente um batráquio evoluído: seus olhos pastosos pareciam mortos, mas estavam sempre atentos; sua língua era capaz de disparar antes do tempo de uma piscada e sua pele enrugada estava cheia de veneno. Batráquios são muito sagazes (pulam sempre na hora certa), mas não são tão sutis e escorregadios quanto as velhas salamandras, por exemplo. Sobretudo não conseguem esconder o seu fastio inato nem controlar o seu apetite. É nesses dois defeitos que se perdem. Parece sempre que estão prestes a estourar, mas não param de comer e sempre sentem que têm espaço pra mais. Devoram até os irmãos menores e os parceirinhos, quando podem.
Do domingo pra segunda daquela mesma semana ainda fui inventar de esperar que o material de campanha dele chegasse. Comigo outros viradores de profissão incerta e subempregados que se agarravam àquela esperança colateral. A mais empolgada era uma velha alcoviteira magricela, uma verdadeira sonsa. Demorou demais e acabei voltando pra casa, pra terminar de ler o Don Juan do Zorrilla, que eu tinha conseguido em castelhano. Antes de ler o que o Camus pensava do mito do don Juan, eu já achava a história de um cinismo supremo: o cara se dedica a fazer todo tipo de putaria durante a vida, se arrepende de tudo um pouco antes da morte (como todo mundo que sabe que vai morrer em breve) e é imediatamente arrebatado aos céus. Porque, no céu, no meio de toda aquela gente abnegada e sem muita história pra contar, parece que precisavam de alguém que tivesse provado de tudo. Mas um outro destino possível não era ele se candidatar à câmara de Sevilha?
Mas não acabou por aí, não. Ainda naquele ano — o nosso ano — Nilaiáli ia ter uma outra grande idéia ruim envolvendo política.
O sujeito prometia casas próprias. A história se espalhou e a casa encheu. O que ela e a maioria das pessoas ali não tinham entendido era que as casas não eram pra todo mundo: a lista era antiga, o que foi explicado horas depois por um cinquentão magro e esverdeado, do boné e jeans surrados, empenhado demais pra não estar ganhando nada com aquilo. O boato devia ter sido espalhado por um sabotador ou um oportunista, só pra criar confusão. Achei uma pena. Aquele bairro novo no meio do nada em cujo horizonte se via até o pé verde de uma serra, o que dava a falsa impressão de que, pulando as cercas no caminho, era possível chegar lá a pé, me agradou. Morando lá, eu ia mesmo tentar fazer a caminhada e subir a serra com as mãos e os pés nus.
Ele também era um anfíbio, se na me engano uma das raras salamandras. Os anfíbios, mais adaptáveis do que resistentes, nunca se candidatam a cargos majoritários, porque sabem que não têm chance contra os répteis. Pelo contrário: sem a sombra fria de um réptil, um anfíbio não chega a lugar nenhum. O histórico de inimizade entre sapos e cobras mostra como essas relações são tensas.
O candidato agia como um duende sorridente. Um escritor da academia, especializado em discursos, mas sua retórica era um incêndio apagado. Me deu uns cem-duzentos cartazes pra que eu saísse colando por aí, como se não tivesse nada melhor pra fazer. Se animou comigo porque a minha mulher da época disse a ele que eu escrevia. Eu não disse que ela era ingenuamente bondosa? Acreditava que os escritores se ajudam uns aos outros.
Peguei os cartazes e, em casa, aproveitei tudo como rascunho. Como tudo que escrevi neles foi no mínimo ruim, acabei jogando foi tudo fora.
Me esqueci de dizer que esses caras todos eram de partidos de direita, mas isso não ajuda nada: hoje eu sei que todos os partidos majoritários são, TODOS, de direita. Eu 2002 eu ainda não sabia disso e agitava bandeiras vermelhas, na 13 de maio, ao lado do dr. Porras, que ainda não era nem doutor. Foi uma madrugada engraçada: acabei capotando no banco do ponto de ônibus, bêbado. Um velho estranho, acompanhado de uma velha estranha (eu lembro que se vestiam como palhaços vagabundos de mambembes), começou a beber perto dali e, pra eu acordar, abriu uma revista Playboy não sei de que mês na minha cara. Só o que eu pude ver foi uma grande mancha rosada e carmim sob a sombra. Uma meia hora depois, quando o casal de velhos já tinha ido e a gente, lá, na rua vazia, esperando não sei o que e com a cabeça estourando, surgiram dois caras, estudantes de sociologia se não me engano, com os bolsos cheios de ovos de lagartixa pra experimentos sociológicos e os olhos cheios de boas intenções. Conversaram com a gente sobre política, mas àquela altura eu já estava de saco cheio.
— Meu chapa. O que importa mesmo é conseguir uma boceta e gozar nela.
Porra, naquele tempo eu dizia coisas assim. Quando eu me lembro disso fico com vontade de perguntar quem é esse cara judeu que dorme em bancos, com baba escorrendo do canto da boca, que vive na minha memória. Um dos estudantes de sociologia (talvez um dia se tornasse presidente: nunca se sabe o que se passa na cabeça desses caras) concordou comigo, mas teve que completar, segundo o seu ponto de vista.
— Se bem que um cacete duro já faz a minha felicidade também.
O outro cara parece que não sabia disso; ficou um pouco assustando. Depois que eles saíram — Essas recordações me matam — a gente quase morreu de rir.

Fazia tempo que eu não perdia tempo com esse tipo de gente, i.e. candidatos, até que o Ibrahim me ligou anunciando um diferente. O Ibrahim tinha crises de empolgação extrema que beiravam a convulsão e acabava em estados depressivos céticos. Até que uma nova promessa inusitada de salvação fizesse ressurgir a sua chama. Mas pra ele se empolgar com um político ou ele tinha perdido a lucidez de uma vez por todas ou o negócio era mesmo sério. Na verdade, ele também tinha dúvidas. Soube que o tal cara ia fazer um discurso mais ou menos perto da minha casa. Ele mesmo não ia porque precisava ficar em casa, traduzindo manuais de preguiça eficiente, porque não ia esperar até que uma editora brasileira tivesse a boa idéia de lançar um volume tão importante quanto Mude de vida sem fazer porra nenhuma, e flagrar mensagens subliminares nas propagandas da televisão. Aí o Ibrahim ouviu falar do candidato e preferiu não me dar mais detalhes. Queria que eu fosse lá ver e lhe desse, eu, a minha opinião. Ele só me forneceu um detalhe intrigante, desses que deixam a gente cheio de trigo.
— Tão falano por aí que o car’é mamífero.
— Mamífero?
Isso eu tinha que ver, mas tinha medo de que não passasse de um embuste. Nem os partidos aceitam a candidatura de mamíferos. Mas, no final, a minha curiosidade foi maior.
Acontece que eu estava com medo… medo de tudo: ladrões, espiões, mortos, mutações genéticas em crianças acenando, mendigos com doenças degenerativas que desfiguram o cara, mortos fazendo aparições, ETs de férias aproveitando o sol e o turismo tailandês e, principalmente, gente inofensiva. Diante de gente inofensiva eu temia acabar me ajoelhando e implorando — Por favor, faça alguma coisa insana —, o que é claro que eu não fazia, porque sabia que, invadido por uma sensação de agradecimento e plenitude — Sim, sim, sim, meu senhor, meu salvador, meu senhor, meu salvador —, eu ia acabar sendo moído a paus, pedras, sapatadas e cusparadas. O delírio cotidiano chegara àquele nível insuportável típico da época de campanha eleitoral. Imprudentemente eu tinha vendido o .32. com que Argel Legar, o teatrólogo que todos conhecem, se suicidara. Agora estava desesperado atrás de alguma coisa com que me defender.
Maloquei um martelo na calça. Me arrependi um pouco porque machucava minha virilha, que eu sentia como um emaranhado elétrico de fios desencapados, mas eu procurava pensar o tempo todo que aquilo seria tão útil quanto uma virilha em bom estado.
Pensei em pregar na camisa um broche do DEMOCRATAS, só pra sacanear com a galera, mas achei mais prudente não. Também não dispunha da camiseta de ninguém pra usar. Porra, a galera do TSE vacilou com os descamisados quando proibiu aos candidatos a distribuição de camisetas. Muita gente ainda contava com essas camisetas, usadas pelos mendigos retirantes até o fim da sua vida útil, insinuando, onipresente, sob camadas renovadas de gordura animal humana e fuligem irradiante — povo que exala um odor de folhas mortas —, desbotadas e cheias de furos de traça, mas persistentes, os nomes dos vencedores e dos seus concorrentes mais fortes e a legenda dos seus partidos majoritários. As estatísticas mostram que O Brasileiro (quem é esse cara? Pelo que os jornais dizem, parece um cara muito infeliz que passa as noites calado, sentado diante da televisão com as luzes da casa desligadas) se interessa cada vez menos por política. No tempo das camisetas, havia ao menos a impressão de que a política se encontrava em todos os lugares, principalmente nos mais insalubres.
Cheguei a pensar que, na verdade, se tratava de um verme, uma criatura ctônica qualquer. Porque acontece de essas criaturas se arriscarem na política, mas nunca com grande sucesso: os votos que conseguem são usados pra eleger um outro candidato a vereador do mesmo partido. O disfarce que usam, sobretudo, é uma experiência muito traumática pra eles: precisam enxertar estruturas ósseas, artificiais ou (mais caro) roubadas de cemitérios, em cirurgias complicadas que não raro terminam em deformações terríveis ou mesmo em morte. Os tiras encontram os insalubres consultórios clandestinos abandonados, portas escancaradas que abrem pro mato, evidência que não serão analisadas espalhadas por todos os lados e, sobre uma maca, uma tira de carne aberta longitudinalmente, os ácidos do sistema digestivo se espalhando como pétalas que desabrocham, e em cada ponta uma boca aberta, mole e desdentada, como no esforço interrompido de dizer alguma coisa. Uma delas é o ânus, mas pouca gente sabe diferenciar uma coisa da outra coisa. Também é muito comum que, depois de parecer que deu tudo certo, os ossos se desconjuntem e se acumulem no abdome. O sujeito se tornar uma jibóia eterno esmoendo. Fica em cadeiras de rodas ou cadeiras de balanço na calçada, o dia tudo, abestalhados, curtindo o movimento e as conversas.
Mas aquele cara não: era mesmo um mamífero que, mesmo pertencendo, ao que tudo indicava, ao sexo masculino, tinha pequenas glândulas, e pelos seus mamilos escorria um leite amarelado e amargo, como de uma lenta hemorragia ou as secreções do gonococo. Só que demorou um pouco pra ele começar a falar. Aí, no meio da multidão, surgiu um sabotador cochichante, enviado por um partido adversário. A galera do rasga, que sempre aparece nos comícios e sempre está onde junta gente, incentivada, começou a pedir o que mais desejava.
— RA-BO!!! RA-BO!!! RA-BO!!!
O cara era feio, o que em política mais do que comum era quase a regra, embora as coisas estivessem mudando: quem se lembrar dos políticos antigos vai perceber que os lábios deles eram finos, frios e secos, e eles se orgulhavam disso e achavam que era assim que devia ser. Melhores tecnologias e exigências democráticas exigiram que o seu disfarce se tornasse mais humano, algo mais sutil do que a extração cirúrgica de suas caldas, feita clandestinamente pelos mesmos médicos caçados que fazem abortos, plásticas em traficantes e implantam ossos em vermes inelegíveis, e o cultivo de células de pele humana com que se vestir. Ou vi dizer que já estão usando pele de látex, silicone e gordura vegetal reciclável. Mas a feiúra dele, daquele cara, era diferente, era uma feiúra humilhada e humana; ele era mesmo feio como a desgraça e magro como a miséria. Tinha olhos de débil mental faminto: um anátema, o candidato perfeito. De repente nem fazia diferença o cargo a que estava concorrendo ou o que ele ia dizer. Só interessava ouvir. Algumas pessoas ali exageraram e cochicharam entre si. — Ele voltou, ele voltou. — E eu, besta, pensando: “Quem voltou? De onde?” Muita gente. Comícios são interessantes: ambientes familiares onde as pessoas peidam como se estivessem em casa. Os vendedores ambulantes aproveitam pra tirar algum troco e as crianças choram.
De repente eu olhei melhor pro palanque e percebi.
— Porra, eu conheço aquele cara…

[airton uchoa neto]

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

anos 2000 (fragmento)


Ora, por que deve haver passado se existe o futuro?

Eu não respondo:

O futuro é uma paisagem móvel de deserto

Onde nada existe duas vezes e nada é novo de verdade.


[airton uchoa neto]



sexta-feira, 12 de setembro de 2008

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

a ação do tempo


o destino de todos os textos:
eu quero

o espaço do poema


eu juro que em algum lugar existe um poema para este espaço

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

todos os dias adeus


minha vontade maior, agora, é mesmo desaparecer e deixar apenas o que interessa à fome dos outros: sou apenas o que posso dizer, e isso é ser o mesmo em muitos ou em todos os lugares, mas não é ser mais, nem é, realmente, ser verdadeiro: eu: sempre desconhecido e permanente num ponto de partida: deixo muitas portas abertas e nunca atravesso: porque o que eu procuro é outra coisa: que eu achava que importasse, mas quantas vezes ainda vou me enganar a esse respeito?