segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O ESCRITOR BRASILEIRO (WORK IN PROGRESS)

O ESCRITOR BRASILEIRO

Uma figura impessoal que confundem o tempo todo com figuras impessoais — o sujeito bem arrumado e formal: o contínuo — e que no embate hegeliano das consciências saía sempre perdendo. Qualquer sujeito que passou a juventude transviando para se tornar um homem respeitável como se saísse de um casulo parece ter argumentos mais fortes só porque fala alto e firme e calmo.
— Quais são suas últimas palavras?
— Eu vou morrer?
— Não. Você vai ser condenado ao silêncio.
— Obrigado.
— É essa a sua última palavra?
— …
— Responda.
— Se eu responder… porra… agora não é mais a última palavra!
— Idiota. O que sai da sua boca suja não vai interessar mais; mas nada vai impedir o senhor de fazer pedidos ao balconista. A última palavra que eu peço é a sua última palavra oficial.
— Obrigado.
— Não agradeça. Faz parte da profissão explicar todos os procedimentos. Se você não soubesse a diferença entre esquerda e direita eu teria que começar por aí.
— Obrigado mesmo assim. Aliás, eu só estou dizendo, de novo, a minha palavra final: “obrigado”. Mas, antes que eu esqueça, qual a diferença entre a esquerda e a direita?
— O coração.
— E se eu fosse uma minhoca?
— Isso não lhe importaria.
— E quem disse que me importa?
— Se você perguntou, lhe importa.
—Não, não importa, não. Perguntei porque nunca me ocorreu que houvesse uma diferença. E aos senhores, porque importa saber se eu sei ou não disso?
— Não podemos processar ninguém antes de ter a certeza de que se trata de um ser humano e não de uma minhoca.
— A diferença não é óbvia?
— Ora, veja bem. O senhor foi obrigado a pronunciar sua última palavra oficial e agradeceu.
— Me livrar do peso das palavras oficiais não parece tão ruim, e se era a minha última palavra achei que o melhor era ser educado.
— Mas o senhor teve a atitude humilde de uma minhoca.
— Minhocas são humildes?
— Etimologicamente sim.
— E agora?
— Agora o senhor está liberado. Só não poderá dizer mais nada oficialmente.
— Tudo que eu disser, então, será extra-oficial?
— E anônimo, como o trabalho das minhocas.
— Ora, então por que se preocuparam tanto em me diferenciar de uma minhoca?
— Não podemos condenar uma minhoca a ser minhoca. Isso seria um contra-senso.
Começa a sentir a pele mais viscosa ao sair do tribunal onde não se viu entrando. A ordem judicial continua no seu bolso? O papel de jornal na poça que a chuva encheu. — “O senhor não nos interessa mais. Não trabalhamos com minhocas.” — Arrasta sua sexualidade úmida e ambígua e um ventre cheio de ovos que fazem cócegas como tentáculos, olhos gelatinosos que eclodirão em criaturas cegas e delgadas, frágeis e insinuantes. — “Criatura suja e perversa! Fora daqui! Meus clientes são gente de família.” — Caminha devagar, pregado na placenta do passo anterior, como se se projetar para frente fosse continuar um parto que nunca acaba ou abandonar a casca coberto de restos fossilizados.
— O senhor bateu na porta certa. O SEACC (Serviço Emergencial de Apoio às Criaturas Ctônicas) foi criado no intuito de que ninguém pudesse dizer que o Estado faz vítimas.
— Mas o senhor está me propondo o Tratamento Sono Eterno!
— Conhece alguma coisa melhor que dormir às custas do governo? É melhor do que a morte. A pessoa tem a vantagem de continuar com vida.
— Mas eu quero ser útil para minha nação!
Ele se levanta da cadeira e o seu atendente, sentado ao seu birô e protegido pelo seu sorriso de ocasião (faz semestralmente um curso de sorrisos adequados), vê o seu menino estufando um peito sem ossos com o retrato do presidente anterior ao fundo. Ainda esperam a mudança do quadro.
— Por que se revoltar contra o seu próprio estado parasitário?
— O que o senhor propõe é imoral!
O cara fica puto e aperta o play. A fita mofada dá a impressão de que tocam o hino nacional debaixo dágua.
— Por que o senhor acha que eu uso esses bigodes de Chico Mendes?
— Achei que fossem de Chico Buarque.
— Não. São de Chico Mendes. Ouviu? Chi-co-men-des. Eu sou um patriota. O procedimento que o senhor chamou de imoral é exaustivamente documentado em ofícios de látex amazônico das Indústrias Paroara S.A. Tudo que aqui se passa está previsto nos Artigos da Nova Constituição.
— Não conheço esses artigos.
— Eles não são nada óbvios. Procure alguém que os leia para o senhor.
— Um advogado?
— Um exegeta.
Os dois se levantam das suas cadeiras cordialmente.
— Volto aqui depois de ter uma interpretação clara das leis.
— Isso pode levar a vida toda, mas a decisão é sua.
— Posso apertar sua mão?
— Perdoe, mas seria antiético e anti-higiênico tocar na sua mão ou em qualquer parte do seu corpo.
O cara, que era pobre e acabava sempre empurrado a tomar as decisões erradas e mais baratas, resolveu ler a Constituição sem a ajuda de ninguém. Achou que poderia trabalhar na redação de artigos, mas um dia também quis ser roteirista de filme pornô, mas logo quando os enredos estavam sendo abolidos. Dormiu com a edição de bolso sob as mãos cruzadas e sonhou que a literatura tinha tornado ele um cidadão da classe média, que os seus amigos dos tempos difíceis chamavam ele de vendido, que só lhe restava abraçar o rancor, a solidão e a desconfiança e que morria assassinado pela prostituta e o cafetão que davam o golpe nele e roubavam seu apartamento. Quando acordou sentiu pena de quem nem todos os sonhos pudessem se realizar. Mas, quando acordou, naturalmente as leis de incentivo à cultura chamaram a sua atenção.
— Boa tarde, senhor, vim trazer o meu projeto.
— Pois não. Qual a sua justificativa?
— Hoje eu acordei e, de repente, descobri que sou um gênio.
— O senhor tem certeza de que não é um sintoma da fome endêmica?
— Sabe que eu ainda não tinha pensado nisso? Já passei fome antes, mas nunca cheguei a nenhuma conclusão decisiva e drástica.
— Pode ser que dessa vez…
— Não, não estou com fome. Tenho em casa uma maçã que deve durar o resto do ano. Sabe como é? Digestão leeeeeeeeeenta!
— Digestão lenta? Digestão lenta? Por que não procura o SEACC?
— Ora, eu já vim foi de lá!
— Por que não ficou?
— Eu não estava com sono!
— Idiota! Nunca ouviu falar como as coisas funcionam? Faça boas relações por lá e seu projeto vai ser aceito aqui!
Ele foi naquele mesmo dia. Achava que terça era um dia ruim porque ninguém com a cabeça no lugar bebe na terça, que junho era um mês podre coberto de trapos, que 10 não era o número da sorte de ninguém, que 2008 era um ano morto desde o nascimento, mas mesmo assim foi. Imprudentemente levava o seu grosso original manuscrito intitulado Eu sou a pós-modernidade, ou seja seu próprio médico e opere com talheres. Escrevera no alfabeto etrusco e a conclusão de cada capítulo dependia da leitura dos búzios.
Na repartição tinham trocado o quadro enfim. A moldura era a mesma, mas trocaram a gravura. Pra economizar não usavam fotografias, mas as caricaturas das últimas páginas da IstoÉ, porque afinal ninguém entende as piadas do Caruzo além dele mesmo. Tiraram a cara de sapo do Fernando Henrique e puseram a cara de duende do Luiz Inácio.
O cara que atendia também era outro, tinha outra idade e uma outra atitude diante do mundo: o radicalismo niilista dos saudosistas.
— O que o senhor deseja?
— Me inscrever para conseguir os benefícios.
— Pois não. Mas o que são todos esses papéis?
— É o meu romance revolucionário.
— O senhor quer ser tornar um desistente conformado sob aval e proteção do Estado e ao mesmo tempo escrever romances? Só um verdadeiro parasita pensaria assim!
— Me disseram que eu teria chances nos editais se fizesse amizades aqui.
O velho quase derruba o birô ao levantar.
— Escute, senhor. Eu sou um patriota! Está vendo essa dentadura? Sabe por que eu uso essa dentaruda?
— Por que o Costinha usava?
— Ignorante! Ignorante! E ainda escreve romances revolucionários! Ignorante! Quer mudar tanto as coisas? É porque não conhece nada. Devia ler mais a história do Brasil.
— Por que é tão importante que em algum momento um banguela tenha feito história?
— Anarquista imundo! Conhece algo mais democrático do que banguelas no poder?
— O senhor tem razão.
— Quem tem razão é o Estado.
Apertou o play e o hino das repartições encheu a sala. A fita era nova, mas cheia de ruídos metálicos como miados de gatos moribundos ou unhas no quadro negro: “Periclitan-te, esfolian-te,/ Nossa naçã-ãã,/ Huhuhuhum, huhuhuhum, huhuhuhum,/ Renasce co’o ven-to, morre co’a chu-va,/ Nossa naçã-ãã.”
— Achei que as repartições fossem construídas sob a permanência.
— A bandeira diz ORDEM E PROGRESSO e vai ser ORDEM E PROGRESSO. Nem que eu me arrombe!
Senta-se cansado.
— Vou fazer a sua inscrição, mas não lhe garanto nenhum privilégio além de uma cama macia, soníferos potentes e soro fisiológico trocado a cada hora. Documentos.
Lhes foram entregues.
— O senhor não pode falar oficialmente? Ora, mas estou perdendo o meu tempo!
— Mas eu pensei…
— Pensou extra-oficialmente.
— Mas afinal por que é que eu fui mesmo processado?
— Por usar o poder da palavra sem licença ainda que inutilmente, segundo consta no processo.
— Como eu consigo uma licença dessas?
— Esqueça. O senhor teria que ter relações estreitas com os Pra-Você-E-Seus-Pareceiros-Inacessíveis.
“Porque nenhum pensamento de reconhecida utilidade publica mandava imprimir que não fosse qualificado crime e pelo qual não houvesse de sofrer alguma pena.” Ele pensou: “É mesmo como dizia a mamãe: ‘Cave sua própria sepultura enquanto puder; que ao menos a ruína tenha sua assinatura’”.
Expulso mais uma vez e empurrado rumo a outras repartições onde funcionários entediados se divertem mandando ele e seus pares perambular em corredores bifurcados sem saber o que é direita e o que é esquerda, com uma pilha de formulários sem validade, pelo mero prazer de ver os caras rodando como baratas envenenadas. Ele aceitou empregos degradantes e sem garantia e o julgo de contratadores boçais por quem tinha que fazer trabalhos intelectuais sujos e gastou o pouco dinheiro que tinha em cópias do seu original e despesas com o correio, enviando o seu romance a distantes editoras de cidades onde, dizem, há dinheiro. O tempo passou e as respostas não vieram. Nem a mentira cordial de ter sido lido e recusado. Nada. Acabou o dinheiro. Acabou. Ninguém mais lhe oferece serviçinhos sujos: a terceirização tomou conta de todos os mercados. Acabou. Já não pode pagar pela fração dos seus menores vícios e, com os seus, se arrasta no campo onde os bêbados mijaram. Ele, a gente da sua laia e os originais recusados de todos eles se tornaram uma massa amorfa e mole de gente com as calças sujas de merda, mijo, esperma seco e menstruações velhas e de papéis umedecidos e gastos nas pontas, presos com grampos escuros de ferrugem em calhamaços que perderam as folhas do começo e do fim.

Dando laudas por doses de cana, máximas por cigarros baratos, fazendo coisas mais sujas os menos caretas pra conseguir coisas mais pesadas, vendendo até a alma por um elogio em falsete, se submetendo ao desejo guloso dos últimos homens desprezíveis e das últimas mulheres desprezadas em troca de um pouco de calor e de contato.
Sermões religiosos, discursos políticos, artigos acadêmicos, redações escolares, anúncios populares em papelão.
O repórter usa galochas de chuva pra que a viscosidade não contamine ele.
— “A ausência paterna, a falta de educação, a carência de Deus no coração dos homens, a morosidade do Estado” etc., etc., etc.
O repórter parece seguro como o religioso sacerdote que propusesse aos fiéis — “Sexo eficiente entre cônjuges para uma procriação bem lubrificada, pois assim disse o senhor Deus (…)” —, mas no começo ele estava inseguro como um contínuo promovido rápido demais, alguém que é muito bom até precisar abrir a boca, até que o poder fálico do microfone, como uma segunda personalidade a vestir, lhe deu confiança para penetrar, higienizado, em todos os lares com reportagens sobre o mundo rastejante na hora do almoço. O âncora — movimenta os braços como se segurasse um cajado — vai aproveitar e fazer um discurso político e mediúnico sobre as criaturas ctônicas e a decadência do ocidente infiel, mas, porra, quem é que não manja a lábia dos caras da televisão?

Todo mundo quer ganhar o seu Esso, não é verdade?

Mas era sempre o mesmo ambiente o que encontrava. Ventiladores lentos e um amarelo abafado que dava um sono febril. Não adiantava nenhuma providência (tudo não parece tão renovado e esperançoso quando mudam os gestores?). Por mais oficial que quisessem erguer as instituições públicas e as empresas privadas, por mais que desejem tornar cada prédio a encarnação em pedra da limpeza, da eficiência, da pontualidade, das metas cumpridas, do planejamento racional, da ordem, do padrão, da normalidade e do ideal, a precariedade sempre irá se infiltrar umidamente em tudo, e o lodo marcará de verde escuro a pele transpirante das paredes minadas de infiltração, o capim criará raízes na pedra, um canto escuro abrigará a engorda das muriçocas, os instrumentos improvisados serão encontrados ao alcance de todos os olhos dos que não podiam vê-los, dos que deviam se nutrir das ilusões de que há mundos perfeitos atrás das portas que se abrem automaticamente, os funcionários serão flagrados trabalhando sem camisa ou dormindo no almoço, as balconistas e recepcionistas deixarão de atender pra conversar entre si ou comprar produtos de beleza, os letreiros terão erros de ortografia e letras faltando, as peças sobressalentes terão cores disparatadas e remendos à vista, haverá lâmpadas queimadas e espaços escuros de vidro esfumaçado nos letreiros luminosos, e cantos para guardar tudo que nunca foi usado e os funcionários que se enamoraram farão cenas de ciúmes na frente de todo mundo.

Com as imagens do cara sem rosto — alguém tem que segurar a câmera pra alguém aparecer na frente dela — os caras rastejam ao sol sua pele lustrosa de gosma como recém-nascidos envoltos em placenta.
Os ovos de seus ventres eclodindo criaturas cegas que os devoram por dentro e muitas folhas em branco para falar sobre isso como se ainda fizesse sentido.
Fugia dos vendedores e de suas propostas de crediário — “O senhor conhece nossos produtos? Aceitamos todas as formas de pagamento — como de prostitutas pestilentas.
Sobre o birô tinha um pacote — tinha um pacote sobre o birô, sobre o birô tinha um pacote, um pacote — da Goiabada Cascão André Luiz, a goiabada cascão da família brasileira, como diz o rótulo, a légitima, made in Uberaba.

[airton uchoa neto]

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