sábado, 5 de julho de 2008

OS ESCRITORES DO PRESENTE

O destino marcou encontros pontuais entre você e a injustiça.

— Acha, então, que essa é a sua missão, alertar os desavisados?

Ontem ele entrevistou o Corrupto Parnasiano no salão de festas de sua (do ilustre CP) academia particular, e garçons serviam bebidas caras e petiscos refinados. As velhas esposas das personalidades conversavam ao fundo: a única certeza é que elas não irão tocá-las porque falta no mundo o heroísmo. Esse foi o cenário de ontem.

— Eu não tenho missão nenhuma. Sou apenas um instrumento de registro, sismógrafo movido por abalos que não fui eu que causei.

— Palavras alheias não vão salvá-lo.

O cenário — HOJE — é um extenso terreno baldio, à noite, entre os 500m de falsa tranqüilidade que separa os dois conjuntos habitacionais. O herdeiro não reconhecido do Intelectual Engajado, o Cara Que Desconfia ou o Traficante de Informações Pseudo Sigilosas, e o Entrevistador Engomadinho, conhecido no submundo (as portas se abrem automaticamente com a sua presença magnética) como o 100% Pura ou o Eu-Sei-O-Que-Elas-Querem, sentam-se em poltronas quebradas, cujas pernas criam raízes na terra que os lábios pacientes dos cavalos amaciaram.

— As palavras são de tooooooooooodo mundo.

— O senhor é um fingido. Quer trabalhar pouco e ganhar muito. Quer ser famoso e ter admiradoras pra levar pra cama.

— Mande me prender. Sou um preguiçoso.

— Prender? Gosto muito de gente que me faz rir.

Na ilha de edição os sujeitos com dedos magnéticos transformam o Escritor Não Publicado num estúpido. O Corrupto Parnasiano comenta: “Muito espirituoso, esse rapaz”. Fala de todos como se fossem sempre muito mais jovens e tivessem coisas demais para aprender ainda, mas leva na esportiva. No seu meio são todos muito liberais, não é?

“Tudo que eu esperava era que um grupo de ladrões reivindicadores começasse a publicar os cordéis anônimos da incerteza.”

Ele tem razão. O censo, por exemplo, devia pensar em novas perguntas.

— A senhora ainda acredita no ser humano?

A morte está em tudo e todos os lugares. Não é uma promessa para depois; é a traição de agora. — “É verdade. Em 1999 eu achava que tinha futuro.” — As coisas começaram a se mover dentro de uma gás metálico que torna tudo mais lento.

.Cotidiano.

Parri, matri, fratri, filiicidas, sob a mira de câmeras fatais, olhos salivantes de vidro, e a vaia das hienas raivosas, a romaria dos justiceiros e dos acusadores.

O ESPAÇO SAGRADO DAS ONOMATOPÉIAS.

Os sinais fechados do destino continuam imaculados.

— Nada de novidades, então. São todos moralistas famintos.

O que seria dos moralistas se não fosse um mundo com ruas de cidades em que há, a negócios e/ou por diversão, mulheres nuas e homens vestidos de mulher?

A multidão das tochas bate na porta.

— “Que querem de mim a essa hora da noite?”

— “Soubemos que você abriga dois efebos depravados.”

— “Sim, é verdade. Qual o problema?”

— “Traga-os para fora. Queremos lhes passar sermões, dar a eles lições de moral, impor-lhes a castidade e casá-los com mulheres honestas que não gostam de sexo e com as quais não precisamos nos preocupar.”

— “Escutem aqui: eles são meus hóspedes e eu devo protegê-los de todas as ameaças.”

— “Não discuta conosco; queremos moralizar os efebos depravados que você abriga. Já!”

— “Eu tenho duas filhas perversas e incestuosas. Ensinem-lhes boas maneiras e respeito por si mesmas; façam com que usem vestidos sem decotes. O que quiserem. Mas nos meus hóspedes vocês não tocam.”

— “Então vamos tirá-lo daí à força!”

Tão melífluos! Eles defenderam seu anfitrião. Revelaram-se vingadores, armados de consolos e lubrificantes.

Um filme tolo que logo vão ter a idéia de filmar sem nem me pagar os direitos autorais. Enquanto isso, Os Caras jogam cartas e dominós com aposentados trapaceiros, enquanto não chega a hora de pôr o urucum no rosto.

— Vaidoso, você. Fala sempre de si mesmo até quando parece que fala dos outros. Considera que é um assunto interessante que nunca se encerra.

Parte de uma geração que de repente olha no espelho e percebe que tem a idade que aparenta.

— Tanto interesse só porque você nunca terá uma visão direta do próprio rosto nem a audição da sua voz como os outros a escutam. Procure alguém a quem amar e toda doação fará sentido.

Crer em velhos sonhos sentimentais para esquecer que o mundo é triste, sustentar ideologias recicladas do passado que faliu, se entregar cinicamente — uma vitória — ao hedonismo mendicante.

O estilo 19 diria AH e OH pra tudo isso.

— No que nos tornamos afinal?

— Naquilo que sempre fomos.

Enquanto houver prostituição barata e for possível dar calote em bares, leva-se a vida com esses pés (todos os malandros já manjaram esses malucos) sobre essas ruas: áfricas, brasis, clássicos subdesenvolvimentos, tigres de papel impermeável, maracas do progresso espatifadas no chão, américas de espanhas com ruas de fogo e cana-de-açúcar, café, tabaco — ¡como cuba non recuerdo! — o código secreto ao céu aberto da lama nas sarjetas, identidades diluídas, tristes homens e mulheres de países frios, desesperos wasp, amoks, kitschs, desidratados terrosos minaretes contra céus de chapas de aço, famílias decadentes de agregados e múltiplas paternidades, crimes classe média que dão semana no jornal, fugitivos escondidos foragidos refugiados sem asilo sem anistia sem salvo conduto sem jornal do dia para ver a sua foto (no lugar o crime classe média e o vício terceiro milênio: as celebridades aderiram a todas as causas e ondas do momento), monótonos silêncios de água estagnada em casas velhas que o ano passado ergueu, criaturas preguiçosas e sem nome que se comunicam com tecnologias atrasadas e ortografias fora de uso, os destinos lentos de quem não se sente agir na história, o desespero dos pesadelos congelados, o momento desnudo dos garfos suspensos diante de bovinas bocas abertas.

A voz grita o NÃO raivoso dos instintos contra tudo.

Os comedores satisfeitos ignoram: na imperceptível câmera lenta, diante dos olhos agudos do escritor que não descreve nem instrui, os pedaços cortados de carne morta continuam seu caminho rumo à prensa torta dos dentes.

— “Adianta ter pressa não. A pressa passa; a merda fica.”

Tubulações cobertas de lodo, fiações expostas, subterrâneos umedecidos, motores envenenados, latarias assimétricas, muros escuros de janelas apagadas que se afastam e se aproximam ao som de passos apressados e trôpegos, ruas com poças sujas de depois da chuva e, nas poças, o óleo de motor que se contorce como se doesse, fuga de ninguém em avenidas abertas, máquinas de sucção que rezam seu metal, indiferença a todas as promessas, olhares zombeteiros de sexualidades ambíguas, toda uma fauna que oculta armas caseiras, soníferos piratas e intenções malévolas, como se o instinto do caçador pudesse ser julgado. A cada beco sem saída tudo desmorona e tudo que quer o homem sem pálpebras é dormir na calçada como os bêbados sem teto.

E sobre mim, sobre eles todos, escritores desse tempo negados no agora, alguma coisa que esqueci — chave de ouro: é o livro dos esquecidos — e permanecemos desse modo — SIM — assuntos sem conclusão

(airton uchoa neto)

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