terça-feira, 15 de julho de 2008

O LIVRO DAS POSSIBILIDADES FRUSTRADAS

Deve ter sido muito mais do que muito interessante

— Deve ter sido algo definível por uma palavra que não me ocorre, mas que mesmo inadequada deve dar uma idéia de participação passional, ao contrário de interessante, que parece esconder as intenções reais (ser a máscara do cliente) ou não ser outra coisa que não a benevolência condescendente do superior ao mediano —,

Sim, deve ter sido muito mais do que interessante

Viver num mundo onde era fisicamente possível encontrar

Ana Cristina César,

Sem saber seu nome por extenso

E ser ter visto esse mesmo nome nas lombadas de livros à venda

Nem citado em artigos de jornais à venda,

E poder ganhar sua confiança a ponto de ser possível

— Se possível foi —

Ler seus versos ainda manuscritos

E gostar da sua originalidade imediata

Sem se preocupar com o significado de verbete da palavra imediato

— Quer dizer, no dicionário, não meditado —

Nem se angustiar com a possibilidade de aquelas palavras desenhadas à mão,

Assim tão pessoais e imprecisas,

Poderem não encontrar uma forma impressa,

Industrialmente reprodutível;

Sim, deve ter sido mesmo muito mais do que muito interessante

Viver num mundo onde era fisicamente possível encontrar

Ana Cristina César

E, depois de encontrá-la e de, talvez ganhando a sua confiança, talvez ler seus versos manuscritos,

Fazer o possível para reencontrá-la e ouvir sua voz de novo

E empenhar todos os esforços

Em descobrir sobre uma cama seu corpo nu e tocável

E ter nas mãos a dádiva de que isso se realizou

Ou a angústia tantalizante de ver isso escapando

Ou a dor impotente de ver isso negado

E ter que empurrar para frente o fato de que você continua existindo.

Isso já passou.

Esse número de possibilidades,

Talvez até concretizadas no coração de alguém que tenha conhecido

Ana Cristina César

No mundo em que fisicamente existia

Ana Cristina César,

Não são mais do que uma abstração,

Mas restou o mundo

Inadvertidamente mais vazio

— E a cada instante um pouco mais abandonado pelas possibilidades que se vão, e quantas puderam dar tudo de si? —

E repreenchido o tempo todo por vidas que começam

Como se nada acontecesse fora dos círculos familiares que as acolhem.

Até quando o ser humano irá desperdiçar o ser humano?

Quantas solidões medrosas ainda vão se preservar e multiplicar o isolamento?

Aquele que ler essas palavras

E sentir que ainda existe a solidariedade

Deve saber

Da solidez que a fé dá às barreiras imaginárias.

Falar, como quem denuncia?

Os problemas continuam sólidos:

Os rostos na rua continuam fechados

E os corações continuam presos na desconfiança

E a isso se chamou ter amadurecido.

Sei sim que tudo isso não passa de um lugar comum,

Mas eu quero mostrar esse vazio.

Hoje eu não quero ser original,

Mas quem já foi?

Quem já mostrou alguma coisa que não estava ali?

1983

Passou,

Ana Cristina César

Passou

Com esse ano inacreditável

Em que coisas que eu não imagino quais foram

Se passaram diante dos meus olhos mau despertos.

Você pode sonhar com o mundo em que era possível encontrar fisicamente

Ana Cristina César,

Mesmo sabendo que não adiantaria sonhar com ela,

Se fosse fisicamente possível encontrá-la:

Uma barreira a impediria de vê-lo,

Porque o desgaste dos seus sapatos não é customizado,

Porque suas roupas saíram de linhas de montagem com etiquetas imitadoras e subservientes a modas atrasadas,

Porque você não conhece Amsterdã e tem cáries,

Porque não saberia se portar entre as sexualidades novas nas boates de Paris e Nova Yorque,

Porque você tem que ser prudente e respeitar a polícia e tem hora certa para acordar, dormir e fazer as refeições,

Porque os seus dias seguintes são problemas que você tem que resolver,

Porque o Rio de Janeiro que lhe coube nao está nos cartões postais nem na Bossa Nova,

Mas não seria tão interessante esse mundo que você imagina

Quanto esse mundo real e pesadamente presente em que sonhar com o impossível é um pecado permitido?

Enquanto isso,

13 de julho de 2008

É mais do que um verso entediado:

É uma nuvem estagnada e invisível ao redor de todas as coisas e pessoas e dentro dos pulmões de tudo que respira e infiltrado por todos os poros abertos e frestas de portas e janelas fechadas e buracos de telhas,

É o cômputo de todas as promessas não cumpridas de felicidade

E a distância inútil entre corpos que se desejam sob cascas de pudor

E a lembrança de tudo que não se pode fazer com os bolsos vazios

E de todos os compromissos a cumprir no dia seguinte

E do aniversário da Revolução que abriu as portas para um novo mundo…

Que hoje está velho e já estava velho ontem.

Que insatisfações inconcebíveis esperam homens e mulheres para mergulhar numa nova revolução

Que torne o ser humano corajoso o bastante para ser feliz

E proclamar que tem um corpo acima do seu valor de uso e de troca?

Maldito mundo em que você deve desistir dessa pose de maldito,

Onde ninguém mais vê oráculos nos doidos

E os doidos são apenas um problema da saúde pública,

Lendas urbanas e lembranças folclóricas de bairros antigos.

Doidos são só gente que diz doidice

E anotar o que eles dizem é perder tempo,

Mesmo que eles dêem conta de um persistente apocalipse que se abate sobre a maldade renovada,

Mas quem lhe deu o direito de ser extravagante?

(airton uchoa neto)

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