sábado, 5 de julho de 2008

OS ESCRITORES DO FUTURO

Não haverá bastante isenção crítica que os salve.

— Eu trabalho numa instituição séria. Enquanto eu for reitor dessa universidade, nenhum formando vai me aparecer com artigos elogiosos sobres esses indivíduos subversivos…

— Mas, senhor, “subversivo” é um arcaísmo vulgar.

— Que seja. Eu luto é do lado do povão mesmo. E diga a essas anarquistas metidos que se concentrem em edificantes e instrutivos romances espíritas.

Quem duvidaria da palavra de um morto?

— Mas, senhor…

— Eu sei, eu sei, “anarquista” também é um arcaísmo vulgar, mas eu sou dos saudosos tempos da lapada na rachada!

Os homens contra tudo — nunca atravessaram portões para concursados — não dependem de nada. Do lado de fora da tipografia clandestina (ele só lê as páginas policiais e sabe que falam dos personagens errados) o amor secreto das meninas rebeldes da classe média — “Meu coração, baby, já está morto. Só o que me resta é uma cabeça para manter sobre os ombros” — fuma um cigarro e repara o movimento como uma onça entediada.

O que ele faz quando as procurações revogáveis com prazo de validade prestes a vencer não o mantém mais nas calçadas sob os olhos caninos e impotentes da desconfiança raivosa; quando ninguém sabe onde ele se encontra? Ora, escreve sob o efeito de anfetaminas e se torna — anacrônico — “nosso herói”, e ninguém nunca enxerga no seu verbo o Nunca mais. Um público anônimo inveja suas aventuras e os jovens fazem canções sem rima em sua homenagem.

O homem que atira na cabeça se questiona.

— Um mundo de lunáticos. Todos querem viver a minha vida.

Pedagogos, educadores, psiquiatras e outros cientistas se debruçam sobre o assunto: um novo método de lobotomia — “Ja, é um processo rádio-magnético que não precisa de incisão” — é aplaudido de pé em palestras lotadas.

O comprador de revistas acadêmicas (ignorou o assunto do momento e a tendência filosófica da moda) vai direto para a página dedicada à educação infantil e desenvolvimento da criança: são os termos técnicos da sua poesia babilônica, onde o eu-lírico põe meninas para dormir sob o efeito de narcóticos para despi-las e banha-las com leite, — como diz a canção, para matar a sede, para matar a sede. — Um quarto cheio de fotos de famílias alheias (férias e finais de semana em litorais à flor da pele), jarras de guloseimas meio derretidas e bonecas em tamanho natural que vestem roupas usadas de meninas de verdade — “Meu bem, tudo teria sido tão bom se você não tivesse gritado!” — pelos velhos tempos e reserva para futuros difíceis. A influência da pedagogia antiga e dos manuais católicos de educação sexual fez com que ele escrevesse com ortografia pré-72: uma perversão natural já estuda em artigo. Ele ainda não sabe que homens cheios de autorizações carimbadas fazem uma contagem regressiva ao pé da sua porta.

Elas ouviram lá debaixo. — O mesmo de sempre — disse uma delas. Não foi a que escreve romances de amor à moda antiga que sempre terminam em navalhadas? Ela sabe cantar a tristeza como uma sereia bêbada, mas, bebendo mais que os caras na mesa, nunca se embriaga. Ela sempre sabe do que fala: conhece todas as mentiras e perdoa. O fadobolerotangoguaraniabluesflamengosambachororancheiro da sua existência derruba histéricos chorosos com o polegar metido em bocas sugadoras e ânus piscantes. O bando armado das suas amigas diz à meia voz: “Fingiiii-da!” Mas — onde todos somos iguais não existem culpados — é bem real que a sua ração está chegando ao fim e isso significa alguma coisa: ele estará na esquina certa, esperando como se fosse dono do tempo: porque o tempo é mesmo dele.

Cercado por corpos secos e choros de mães dolorosas. Pensa: “Eu sou a luz na idade das trevas”. Ele nunca se desespera porque sabe que eles vão aparecer. Sempre fazem tudo pela dose seguinte. Enquanto isso, ele se exercita. — “Sou o último metafísico.” — Toda uma poética racionalista saída da dureza enferrujada dos seus dedos finos.

O homem que atira na cabeça assiste de longe a transação. Pensa:

“Sim — o espetáculo do mundo por dentro. A lágrima da menina que eu seguei com beijos: por que precisamos sofrer tanto? Acabaram-se o palco e platéia. Depois que os olhos se abriram — senti mesmo o desejo de protege-la de tudo, mas era querer ser outro numa velocidade inferior — restou apenas tomar uma posição estratégica e se preparar para atirar, com a certeza de que a munição sempre acaba cedo demais, com a certeza de que se está derrotado desde o primeiro movimento do peão.”

Tudo que queria era escrever uma canção que o fizesse sentir que o passado passou e que hoje somos inacreditavelmente felizes.

Mas uma mesa de vidro fria cercada de homens precisos e seguros — mais cedo ou mais tarde cumprirão o seu dever — aguarda dentro da sua indiferença de coisa.

A mesa de vidro faz parte de um inventário vitorioso de tudo que foi feito para sobreviver ao ser humano. Todos os objetos em que não cabe assinatura.

— Nunca na vida senti tanto cheiro de pólvora na rua.

— Também nunca fizemos tanto sexo. Homens e mulheres, estão todos loucos e tudo parece normal.

Livros clandestinos que todos lêem e de que ninguém fala permanecem bem guardados, como se as crianças não pudessem encontra-los.

— É. Agora você sabe o valor de cada segundo.

O futuro de uma geração que pode ter esperança. Como eu gostaria de acreditar nos meus sonhos!

(airton uchoa neto)

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