sábado, 5 de julho de 2008

C L A U S T R O F O B I A


Nunca tive oportunidade de lhe perguntar sobre o seu processo de criação. Me constrange um pouco não saber pra quem se armam as melhores armadilhas que se encontram nas suas histórias. Os narradores ficcionais acabam adquirindo uma verdade quando, em algum momento, traem sutilmente os seus próprios segredos, de uma forma que um leitor menos perspicaz, desses interessados apenas em chegar ao fim de uma história, não é capaz de perceber. A dúvida é se o seu criador real e encarnado, que anda pelas ruas sem que as pessoas ao redor desconfiem do que se passa na sua mente, como o homem que cometeu o crime perfeito pelo qual nunca será descoberto (sua maior dor é não poder revelar sua obra de arte: não por medo da condenação: é que revela-la é traí-la), quis que suas personagens se comportassem assim ou se foram elas que se revoltaram e resolveram tomar seus próprios rumos: parecia que traíam a si mesmos deixando pistas do que eram na verdade e escondiam ser, mas podem ter feito isso de propósito: deixaram pistas ao criador do que eram e o criador não sabia. — O crime não foi traído em sua arte: foi coroado. — Seu criador continua trabalhando, se locomovendo, tecendo relações humanas normais e — ninguém suspeita de nada. (Podem descobrir até seus escritos e lê-los e elogia-los e publicá-los: o segredo de morte é outro.) Espero que ele próprio nunca se esqueça e nunca se deixe pegar de surpresa. — Mas não: eu também não sei do que se trata. — Apenas conheci um sujeito um pouco estranho, mas ao mesmo tempo muito cordial, cujo único defeito era a sua linguagem demasiado castiça (falava como se redigisse uma carta comercial), com o qual muito conversei sobre ciência: o sujeito conhecia todas as suas realizações e promessas e falava do assunto como um entusiasta, mas também sabia dos seus limites e os criticava: eu não sabia que ele se parecia com uma personagem de um conto do Elvis… até o dia que eu li, e, por coincidência ou não, nunca mais tive a oportunidade de conversar sobre ciência com aquele sujeito que tomava parte do caminho que eu tomava pra casa — sumiu antes de eu me lembrar de perguntar a ela: como se chamava. — Talvez isso nunca tenha acontecido ao Elvis, talvez aconteça o tempo todo e ele já esteja acostumado. — No final eu sou como aquela parte da população que sabe que não sabe e vive desconfiada. — Como anda a memória do criador? — Nunca tive oportunidade de lhe perguntar sobre o seu processo de criação, mas há coisas que uma pessoa minimamente civilizada sabe que não deve perguntar à outra.



Todo homem possui em sua mente uma região de sombras onde jazem as lembranças mais odiosas e tétricas que tentamos olvidar para sempre. Quando, porém, um abalo incomum ou uma tragédia fazem essas lembranças profundamente enterradas e reprimidas virem à tona, o resultado é, no mais das vezes, o ocaso da consciência e a decadência da alma. Esta foi, infelizmente, minha sina, e é o que relatarei a seguir.


Há mais de oito anos que trabalho num escritório de contabilidade juntamente com cinco colegas contadores. Nosso escritório é localizado num edifício muito antigo de onze andares – o “Realeza” –, construído no início do século XX, e que passou por reformas na década de 1960 e depois em 1986.


Não era exatamente meu sonho passar o dia numa sala fechada com papéis e números, já que sonhava trabalhar ao ar livre, no campo, talvez. Porém, a vida geralmente nos carrega para onde não queremos ou não planejamos, pois no mundo atual os sonhos ficam em segundo plano: em primeiro lugar vem sempre o dinheiro.


Felizmente, nossa sala de trabalho fica no segundo andar, de forma que posso subir e descer pela escada sem precisar utilizar o infame elevador – para mim, um pesadelo. É claro que era objeto de piadas dos colegas – que conheciam meu temor incomum -, mas isso pouco me importava: pior seria me arriscar à toa, utilizando aquela coisa apertada e fria, o que não fizera de forma alguma nesses oito anos.


Todavia, numa sexta-feira chuvosa do mal-afamado mês de agosto, o dono de uma empresa – e nosso novo cliente – que se localizava no 11 º andar do mesmo prédio, exigiu explicações sobre o fechamento contábil de sua empresa. Meus colegas logo se eximiram do encargo e me indicaram para a tarefa. Aborrecido e muito a contragosto, juntei os documentos necessários numa pasta e saí para minha missão.


O longo corredor se encontrava vazio e pouco iluminado devido ao tempo escuro, pois chovia torrencialmente lá fora, conforme era possível ver através das janelas de vidro do prédio. De longe, avistei a porta do elevador – causa de meu tormento. Não apressei os passos: caminhei vagarosamente, dividido: uma parte de mim rezava para o longo corredor não chegar ao fim e prosseguir indefinidamente; outra, dizia-me para terminar rapidamente tudo aquilo e me livrar de vez daquele calvário. Não preciso dizer que a primeira parte predominava. Depois de uns 80 passos, cheguei em frente à porta. Trêmulo, pressionei o botão de subir e aguardei angustiantes segundos. Olhava o relógio incessantemente, bem como a chuva pela janela, e comecei a sentir minha pressão baixar.


Finalmente, o ascensor chegou e a porta se abriu. Não havia ninguém dentro e pensei muito antes de dar os passos decisivos. Respirei fundo e entrei de uma vez: precisava acabar logo com aquele pesadelo! Apertei o botão “11” e a porta vagarosamente se fechou, para meu desespero íntimo. O elevador começou a subir, e resolvi repetir baixinho – mesmo indo contra minhas convicções – as orações que minha tia havia me ensinado há muito tempo atrás, pois nos momentos críticos o racionalismo cede lugar às crenças e superstições seculares adormecidas em nossas mentes.


Como uma maldição resultante de meu medo, ao chegar próximo ao décimo andar (faltando apenas mais um para chegar a meu destino), o aziago aparelho parou inexplicavelmente: não havia sido acionado por ninguém, e tampouco a porta se abriu. Segundos apavorantes se passaram, e quando caí em mim, comecei a apertar incessantemente todos os botões que via, mas em vão. Um suor frio começou a escorrer de meu rosto e meu coração disparou. Comecei a bater na porta e nas paredes daquela clausura metálica e gritei o mais alto que pude, mas ninguém parecia ouvir meu socorro. Minha esperança renasceu quando me dei conta do interfone, mas para minha desgraça o aparelho estava igualmente inutilizado. A pane elétrica – coisa não tão incomum no Realeza - atingira também o sistema de refrigeração, de forma que o calor ficou insuportável. Porém, não tive ação sequer de tirar a roupa, pois tremia de medo sentado num canto, aturdido e tentando fazer-me crer de que estava passando por um daqueles pesadelos “reais” que temos de vez em quando. Mas não o era, infelizmente. Passaram-se minutos eternos e comecei a chorar.


Vieram, então, lembranças de muito tempo atrás, quando tinha apenas oito anos e a vida me era muito pesada: havia perdido minha mãe com alguns meses de vida, e fora criado por meu pai – um verdadeiro carrasco na acepção da palavra.


Nós morávamos em uma fazenda no interior do Nordeste, num casarão que no século XIX havia sido a morada de um senhor de engenho, nosso antepassado. Escravos haviam vivido ali, em compartimentos escuros, apertados, tétricos e insalubres, que constituíam a senzala. Havia restos de correntes grossas e dos equipamentos rústicos que utilizavam em seu trabalho insano: a produção de açúcar e rapadura. Este senhor, que a família evitava citar até mesmo o nome, havia sido morto cruelmente por um grupo de ex-escravos, em vingança pelos maus tratos que por uma vida inteira tiveram que suportar. Pelo que descobri, a tortura que sofreu não foi nada comparado ao que proporcionava aos pobres negros.


Vi certa vez um quadro onde estava pintado seu retrato, e ele me lembrou imediatamente meu pai: a barba longa, o semblante sisudo, a cabeça calva, a testa franzida e os olhos amargos e tristes de quem odeia até sua própria natureza. Se existe reencarnação, meu pai com certeza era resultado do retorno de meu impiedoso antepassado, morto em condições indizíveis. Como se fosse por uma vingança incompreensível, o desgraçado parecia querer descontar em mim todo o ódio e a infelicidade que trazia em sua alma, frutos, talvez, de lembranças ocultas em seu inconsciente tenebroso.


Banhos gelados, chicotadas e tarefas muito além da capacidade física de um menino, faziam parte da gama de torturas que ele me presenteava quase diariamente. Também, vez por outra, acorrentava-me como se fazia com os antigos escravos. O pior de todos os castigos, porém, era quando aquele homem cruel me prendia nos aposentos escuros e apertados em que os negros eram presos quando cometiam algum ato de rebeldia. Quando ele ameaçava me trancafiar, eu derramava rios de lágrimas em seus pés, implorando por todos os deuses e santos para que não cometesse aquele ato tão desumano, mas dificilmente ele atendia a meus apelos, e acabava me puxando pelo braço para a sombria clausura.


Nesses quartinhos escuros e medonhos, a umidade das paredes deixava exalar um odor nauseante, e lá cheguei a desmaiar várias vezes de tanto pavor e desespero, pensando ver aparições macabras dos negros mortos tempos atrás, e até mesmo ouvir seus gritos de dor. Numa noite em que o carrasco havia bebido muito além da conta, o desgraçado me prendeu numa gruta que havia em nossa propriedade, e fechou a entrada com uma pedra. Naquele buraco escuro, passei toda a noite e parte do dia seguinte, e não morri porque o corpo parece ter muito mais resistência que nossas mentes. Como não enlouqueci completamente, não sei, mas herdei neuroses várias e profundas que me acompanhariam até meus últimos dias. O medo do escuro, de estranhos e, principalmente, de lugares fechados eram os mais freqüentes. Este último era pra mim um grande tormento e por isso fugia, tal qual um menino assustado, de lugares pequenos e fechados como um elevador...



Essa maldita fobia consumia meus nervos, e amaldiçoei meu pai por muitas noites depois que me livrei de seu jugo, graças à intervenção de uma tia que morava na Capital e que presenciou minha tortura, me livrando finalmente daquele inferno. Graças a ela que ainda consegui certo equilíbrio mental, pelo menos o bastante para conseguir estudar, ter uma profissão e manter uma vida sadia, na medida de meus limites, claro. Evidentemente, as marcas da infância são muito fortes, e não somem nunca de nossas almas, mesmo que pareçam adormecidas.


Todas as lembranças ominosas que tentava a todo custo enterrar – inclusive apelando para analistas, psicólogos, psiquiatras e todas as drogas que receitam – emergiram quando me vi preso naquele elevador medonho e sinistro, encolhido num canto como quando meu pai me prendia na clausura dos antigos escravos. Meu tormento chegou a um ponto que me vi completamente enlouquecido, como se algo dentro de mim – uma aflição que parecia um calor ou algo parecido – quisesse sair a todo custo de minha alma, causando-me dores e sensações que há muitos anos – desde minha infeliz infância – não sentia.


Passei a puxar meus próprios cabelos e a esmurrar as paredes. Emitia gritos incomuns e uivava como um lobo preso a uma armadilha. Meus punhos sangravam e rasguei minha roupa de forma completamente insana. A luz do elevador passou a piscar, e pensei ver neste momento o fantasma de meu maldito pai - o carrasco causador de tantos traumas em meu corpo e em meu espírito. Naquelas visões ensandecidas, ele se mostrava com um riso sarcástico e os olhos flamejantes de ódio, como foi em toda sua vida. Parecia desejar meu fim e mostrar que de alguma forma iria lhe acompanhar para o lugar infame onde deveria viver desde sua morte, talvez o próprio Hades. Meu desespero foi total, e passei a bater a cabeça nas paredes metálicas do elevador, o que parecia só fazer aumentar sua glória. Por incrível que possa parecer, existem homens que sentem um prazer indefinível ao ver um animal ou mesmo um semelhante agonizando de dor. Os torturadores devem sentir algo assim, bem como os psicopatas. Infelizmente, tive uma dessas almas perdidas como meu genitor e pagaria a vida toda por este infortúnio.



Por fim, encontraram-me caído, inconsciente. Escrevo estas linhas no hospital onde estou internado, com inúmeras fraturas e cortes por todo o corpo. Também estou sendo acompanhado por um psiquiatra, mas já conheço seus métodos e tratamentos ineficazes, pelo menos para mim. Na cama ainda vejo, quando o médico e as enfermeiras saem do quarto, o fantasma amaldiçoado de meu pai à espreita, aguardando meu fim. Não suporto mais essa situação e por isso porei agora um termo nisso tudo.



Ele ri medonhamente, pois sabe que chegou minha hora. Também haverá tortura no além?


(julho/07)


[por Elvisney de Moura]



Nenhum comentário: