domingo, 6 de julho de 2008

O GRANDE HOMEM POSITIVO

Soube que o maior vendedor de esperanças fáceis do século XX acabou se matando.

Nunca li seus livros bem vendidos, ocupado que estava com a literatura antiga que os sebos vendem bem barato,

Mas imagino seu humor publicitariamente inteligente

E sua comunicabilidade muito ampla

Que sabia à multidão de mil comícios e a verbo amplificado e transmitido via satélite.

Ajudou muita gente?

É a dádiva máxima das cabeceiras no meio do Og Mandino, do Richard Bach, do Paulo Coelho e de traduções demagógicas da Bíblia?

Se a felicidade é aceitar como sucesso

Dar segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos e vidas inteiras,

Que não voltam,

Na construção do que não é você e do que não sou eu,

Então ele merece todas as flores de enquanto puserem flores no seu túmulo.

O sr. Sorriso Confiante,

O sr. Dízimo Contente,

O sr. Encontro de Casais Católicos,

O sr. Experiência Transcendental, Dom de Línguas e Profecia S. A.,

O sr. Tele Mediunidade e Disque Além,

O Grande Homem Positivo,

Mr. Amarican Dream For All,

Herr Terceirização Familiar,

Messier Personal Christ,

O maior vendedor de esperanças fáceis do século XX, porém,

Acabou,

Acabou se matando.

A novidade abandonou os seus títulos de ouro

E a tragédia não deus aos seus escritos uma aura de mártir comercialmente aproveitável como a do Che Guevara das camisetas.

No lugar, ficou o horror naqueles que esperam que os heróis sempre vençam.

Quem vai lutar contra o desperdício das almas?

Quem vai lutar contra o desperdício dos corpos?

Quem vai dar razão a esses lutadores?

Quantos prédios serão erguidos antes que cada livro de poesia saia de novas mãos teimosas para os olhos de ninguém?

Quantas vidas por tijolo consumiu cada um desses prédios magníficos?

Ele tinha a resposta,

Para isso e para tudo, antes mesmo que surgisse a pergunta.

Não importa se era a resposta certa porque era a adequada,

E ter razão é muito mais do que provar que se tem razão?

Nem mesmo os pais precisavam mais pensar no que dizer aos filhos.

Um manual de instruções que os países democráticos em desenvolvimento deveriam fornecer a cada um dos eleitores

E as multinacionais, a todos os funcionários,

Que deveria ganhar o selo do MEC e ser distribuído aos alunos nas escolas públicas

E vendido nos sebos apesar da etiqueta de “VENDA PROIBIDA”,

Um manual de instruções muito prático e que não exigia muitos conhecimentos prévios

Nem a rigor que se fizesse nada depois da leitura,

Porque a própria leitura já era a dádiva,

Se encontrava ao alcance de todos os bolsos,

Em edições de luxo e de papel jornal reciclado,

Dizendo o que fazer em todos os momentos e situações e a cada fase da vida.

Enquanto isso,

O mundo executivo o considerava um gênio

(Não consideramos, com muita facilidade, geniais aqueles que dizem apenas o que queremos ouvir?),

Os executivos júnior se vestiam como ele,

Os executivos sênior davam conselhos tirados do início de cada capítulo e neles inspiravam suas palestras,

Os estagiários carregavam sob o braço seu volume ensebado e marcado a dedo nas páginas mais relidas

E nas ruas sorrisos cheios de gratidão se abriam como flores amarelas à sua presença

Como no jardim amarelado e sufocante das noites de autógrafos.

(Fazia como os seus concorrentes

E citava nas epigrafes

O Exupéry, o Mark Twain ou até o Emerson,

Para que seus leitores se sentissem justificadamente inteligentes e espertos?)

Sem que ninguém visse,

Porque lá é sempre escuro,

Uma outra semente brotava no seu peito.

Não sei de tinha esposa e filhos naturais

— Além dos milhares que se consideravam recém-nascidos a partir da sua leitura —

Nem se dispersou clandestinamente sua fortuna

Como qualquer vulgar dono do mundo

No consumo destrutivo dos prazeres fortes

Que seus leitores bem-aventurados não esperavam mais da vida,

Que podem diminuir o número dos segundos a viver no futuro, alargando a cintura da ampulheta,

Mas que fazem com que cada segundo valha a pena como tempo ganho no presente,

Ou se lhe bastava a contemplação de muito alto,

Que esquece o céu sobre todas as cabeças,

E da multidão sem rosto composta de renúncias,

Gente crente de que deseja e de que pode chegar no mesmo topo.

´

Terá se aberto ali um par de olhos analíticos de mais e frios como a análise

Como os olhos do juiz acusador,

Que não ama nem odeia,

Ou de alguém que não participava da alegria geral e deixou muito claro que, não importa que palavras belas se diga,

Não importa em que canção doce se ajustem

Nem em que bordão publicitário elas explodam,

Matematicamente pensadas até nas cores e fontes,

Não importa,

NÃO,

Que palavras belas se diga,

O SER HUMANO CONTINUA SOFREDOR E SUSCETÍVEL,

Terá se aberto um par de olhos que lhe disse isso?

Ou terá visto da altura o seu avesso, que é o abismo?

Talvez se sentisse um vendedor de brinquedos quebráveis,

Talvez visse — o escândalo em potência da opinião pública — em cada leitor seu um otário que pede para ser enganado,

Talvez o seu sucesso não tenha comprado o amor dos filhos,

Talvez a mulher que ele desejava no tempo em que não era ninguém fosse fiel a um outro homem, que não se tornou nada, mas com ele ela era feliz.

Talvez ele se julgasse mais inteligente do que os próprios conselhos;

Talvez uma dúvida pretensamente maior que as existências humanas tenha permanecido,

Mas se matar por isso é se matar por nada…

Porque se matar por qualquer coisa é se matar por nada.

(O maior desperdício de coragem de que alguém é capaz,

E os que ficam dizem que foi covardia

Se antecipar à natureza

E decidir por si mesmo a hora final

No relógio sem ponteiros dessa bomba de implosão.)

Seus leitores — homens inseguros e mulheres desprezadas —

Já tinham abandonado essa idéia como possibilidade.

Encontraram nos seus livros a tábua solta do navio depois do naufrágio

E esperavam com ela chegar ao litoral:

A terra que ele abandonou com as próprias mãos

Para mergulhar num mar sem superfície.

Ele era como qualquer um a quem pode faltar alguma coisa.

Era como qualquer um

E precisava da ajuda dos outros.

Era como qualquer um

E era mortal e pôs à prova essa fragilidade.

Talvez tenha tido a ilusão

De que as mãos invisíveis que tornavam à prova de vida

O corredor branco que dá acesso a uma placa esmaltada com seu nome numa porta

Tinham abandonado a sua função anônima.

A ausência dessas mãos cuja presença não deixava marcas deixou sua impressão pelo avesso

No canto em que os pernilongos descansam sua engorda.

Todas as outras mãos que cuidavam do que parece que não tem importância

E negavam com seu esforço diário a ação constante do tempo

Também tinham ido.

Os tufos de cabelo nos cantos empoeirados dão conta da passagem de gente por ali.

Passaram todos; ninguém ficou.

Nenhum ouvido estava lá para suas queixas inúteis.

Nenhum ninguém restara.

Os telefonemas urgentes deram conta

De que ainda havia mãos invisíveis garantindo a comunicação e o trânsito incessante dos negócios entre as pontas dos fios,

Mas na outra ponta desse fio,

Posto para esperar ao som hipnótico de caixinhas de música sem bailarina,

Ele percebeu que seu nome mudou de lugar nas agendas dos líderes

E que as secretárias desses homens e mulheres importantes não tinham mais na memória o seu número,

A não ser se renegado para o rol dos intocáveis.

Despertou.

Despertou no mundo real em que era reverenciado e inacessível,

Isolado da existência dos que não sabiam como ele se chamava.

Despertou

Para perceber algo que ninguém nunca saberá dizer o que foi

— Talvez uma pequena mancha no seu nome na placa esmaltada,

Que cresceria caso ninguém cuidasse disso,

Talvez algo menor e menor até a invisibilidade,

E, seja o que for, terá sido, de algum modo nada,

E o empurrou —,

Para acabar, acabar se matando.

Foi enterrado com o espanto ao seu redor

E sob a ameaça de um esquecimento urgente.

Sua lápide era um palácio

Em breve não saberão por que.

E, ao redor do símbolo da grandeza que acabou,

Para que todos vejam e saibam e mesmo que não vejam e saibam,

Floresce a grama.

(airton uchoa neto)

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