segunda-feira, 27 de outubro de 2008

LANÇAMENTO DE LIVRO I & II





Série de crônicas de Raymundo Netto para o jornal O Povo sobre fenômenos da literatura cearense bem conhecidos nossos, e, creio, de outros moradores de província


I.


A sina incansável dos autores cearenses desconhecidos (quase todos os são) na ávida busca de seu público leitor para o lançamento de suas obras.

Quando o autor e/ou sua obra são bastante aplaudidos pela crítica e público, das duas, uma: ou eles são muito bons ou são, realmente, muito ruins!

Esse paradoxo que, à primeira vista, parece não significar coisa alguma, também transita em outras linguagens artísticas ou mesmo em outros aspectos menos importantes da vida, como a política, por exemplo.

Não está entendendo? Pois veja só pelo que passei dia desses:

Um desconhecido autor cearense, quase todos os são, ligou para convidar-me para o lançamento de seu livro. Disse ter sabido o número de meu telefone por meio de um “colega”... Assim como aquele outro autor — não menos cearense; não mais conhecido — que contou ter convidado Deus e o mundo para um de seus lançamentos (dizem que faz lançamentos até em paradas de ônibus e banquinhas de feira), e destes, só Deus comparecera, também esse jovem relatou que num primeiro lançamento desse mesmo livro não havia aparecido ninguém. “Ninguém”, achei, era modo de dizer...

O certo é que divulguei o tal lançamento. Era de um romance de título pouco literário, premiado. A capa mais parecia de guia de turismo e nela se lia: “romance indígena”.

Embora com outras e diversas atribuições, prometo, cumpro: fui a tal evento.

Chegando lá, encontrei um jovem de pouca altura por trás de uma mesinha. Perguntei se era o autor. Confirmou-me e retornou:

— E você, quem é?

— Sou o Raymundo Netto.

— Então acho que só vem você! — sentenciou, numa conformação de dar gosto.

O lançamento estava marcado às 19h. Demos, pela ignorância de coisa melhor a fazer em lançamentos de livros, a conversar miolo de pote. Ele falava muito, mostrava-me, espalhados em fila sobre a mesa, os livros de um outro autor que dera, naquela tarde ainda, a certeza da presença e que ele aguardava ansioso para vê-lo autografar suas páginas... Ainda bem, pensei, que por ali não faltavam cadeiras para o rapaz esperá-lo... até hoje!

Confirmou que aos 16 anos “encontrou inclinação à faina poética” e dez anos depois, “romancista, poeta lírico, compositor, teatrólogo, dramaturgo, contista e escritor”, vivia da venda de seus livros — tinha mais de seis títulos, dentre eles, alguns traduzidos para o inglês e francês, garantiu. Lembrei outra figurinha que afirma ser o autor mais “não-publicado” do Ceará...

Em seu livro, assinava as orelhas, o preâmbulo, o posfácio (o prefácio foi o editor) e a extensa sinopse da quarta capa (que tem como fundo a bandeira do Brasil), além de oferecer um glossário, apenso histórico e um roteiro de leitura (lembra daquelas fichas de leitura do tempo de colégio? Voltaram!)

Disse-me não ler livro de ninguém. Autor cearense? Nem pensar! (abria exceção para o Alencarzão) Escrevia e pronto!

Falou-me do “sonho” de entrar para a Academia Cearense de Letras e que “iria labutar, incessantemente, para isso” (angustiei-me). Detalhe: há poucos meses, soube, “adentrou” (acho que ele prefere essa forma) os umbrais de uma das 999 academias de letras existentes no Ceará.

Em meio ao “convescote”, e com todo o jeito, tentei convencê-lo de que aquilo não era romance indígena, pois o autor (ele) não era índio. No máximo, indianista. Ele sorriu paciente e simplificou: todos éramos índios.

— Tudo bem, mas se tentar explicar isso para os índios é capaz de eles se ofenderem... — alertei.

Criticou-me quando soube que eu distribuía livros — “doidice” — e pôs-se a me dar conselhos e orientações. Foi quando, finalmente, perto das 21h, uma funcionária da livraria, muito delicadamente, dirigindo-se a ele, perguntou se achava vir mais alguém — estavam precisando do espaço — e se poderiam servir o coquetel. Ele olhou para mim e lançou: “Pode?” “Sim, claro, acho que é boa a hora!”

Uma mocinha sorridente, então, trouxe-nos duas bandejas circulares grandes com salgados de toda a espécie e vinte e quatro copos de refrigerante. Sentamos os dois numa pequena mesa da livraria, e diante da farta oferta, pus-me a dividi-la com alguns clientes. Uma das, nos disse: Ah, hoje tem lanche por aqui? Está melhorando...

Ao despedir-me, porém, o “neófito” deu-me umas tapinhas nas costas, torceu o canto da boca num sorriso de consolo, e pude perceber que, mesmo diante do imenso vazio de sua solidão, ele ainda conseguia forças para sentir pena de mim.


II.


O escritor Raymundo Netto volta a abordar os caminhos de um escritor às voltas com as gráficas e o lançamento do livro

Nos dias atuais, concordemos, é muito fácil se publicar um livro; não publicá-lo, porém, diante do apelo irresistível da vaidade, é que é difícil. Estava até pensando na possibilidade de não publicar essa crônica... mas fracassei!

Quando o indivíduo, certo de “querer ser” escritor, — aliás, escritor já é “ex” até pelo próprio nome — decide mostrar sua obra a um editor, descobre que no Ceará não se tem disso não. Dá até para se concluir: editora não é bom negócio, caso contrário, os americanos já estariam por cá.

No entanto, quando o escritor consegue juntar uma michariazinha, ou a pede emprestada ao emergente cunhado, a fundo perdido, é claro, acaba se entregando nas mãos de donos de gráficas (com nomes de editora) que batem-lhe às costas e cobram-no o serviço em troca de um “iessebeênizinho” de nada, o que para ele, o sujeito mais solitário e incompreendido do mundo, é motivo de lavar-se em lágrimas. O pior: mal o livro entra no prelo, o desgraçado passa a sonhar com a cerimônia de outorga do famoso e bronzeado quelônio, tão feinho, coitado, que não seria de todo ruim se o deixassem a segurar portas, ao invés das frágeis tartaruguinhas (suas primas) de areia.

Eu mesmo, antes de publicar meu primeiro livro, passei por vários editores, só recebendo, de certo, unânimes parabéns, parabéns, parabéns... Aliás, eles são mestres na técnica de desaparecer após tais parabéns. Conselho: quando for a sua vez, agarre bem a mão de seu editor, senão ele some!

É, vida de escritor não é fácil, mas é criativa. Conheci um que, como muitos, enviava o produto de sua lavra para escritores renomados, aguardando ansioso seus pareceres. Estes, respondiam — pressupomos que deviam ler, mesmo fosse como Jorge Amado (não li, mas já gostei) — por e-mails ou em breves cartas que o autor fotocopiava e distribuía orgulhoso entre amigos e desconhecidos em mesas de bar. Numa dessas, conferi a assinatura de um: “Dr. Scliar”. Ah, e por falar em fotocopiar, outro dia um escritor veterano afirmou que ninguém sabia, mas ele seria o autor cearense mais lido em Pindamonhangaba, via xérox!

Acontece de tudo um pouco por aqui. Outro autor, por exemplo, revoltou-se com o livro “de papel”, fez uma fogueira no fundo do quintal e decidiu publicar somente em blogues. Depois disso, orgulha-se, embora agora tenha mais de 200.000 não-leitores habituais. Tem aquele outro que, após sucessivos insucessos (que construção engraçada!), converteu-se em Jesus e chegou à conclusão de que literatura é coisa do cão, ou mesmo o caso do rapazinho de boca suja que se diz poeta autodidata pós-modernista, pioneiro no Ceará da reforma ortográfica, trocando “j” por “g”, “s” por “z”, dentre outros involuntários barbarismos que ele denomina “rupturas”.

A mais trágica história de autor e editora, entretanto, aconteceu ano passado:

Um poeta, angustiado por não exercer sua arte como ofício, abandonou o chapéu panamá, deixou de vender livros artesanais para turistas do Dragão do Mar e decidiu procurar um editor que publicasse o seu livro (soberbamente recheado de rimas melosas: lua com tua, coração com paixão e solidão, amar com cantar e tererê e tarará). Estava irredutível, disposto inclusive a lançá-lo em local privilegiado cujo apresentador sorridente, apesar de ler muito pouco, não poupa o público de suas súbitas intervenções, antecedendo-as sempre com “eu não sou crítico literário, mas...” e lascando a rouquenta bobagem da noite. Enfim, voltando ao assunto, certo dia, nosso autor marcou hora e reuniu-se com um editor que, mesmo diante de apaixonadas proposições estéticas, rompeu o silêncio e disse-lhe, na lata: “Lamento, não publicamos autores vivos!”

Machucado brutalmente, o poetinha arrastou o caminho de casa. Lá chegando, no centro do quarto vazio e sujo, refletiu: “A Poesia é minha vida!” Assim, retornou à editora, numa inquietação dos diabos, invadindo-lhe o gabinete, e, diante do assombrado editor, revelou, dos coses da calça, a lâmina brilhante. Anunciou:

— Antes a vida pela poesia, que a morte pelo silêncio em agonia!

Dito isso, rasgou, em meio ao pranto soluçante, o pulso magro de escrevente. Encharcado em sangue e lágrimas, antevendo os prováveis estertores finais, lançou-se ainda sobre a mesa editorial, espalhando pelos cantos, as canetas e chaveirinhos:

— E agora, senhor editor, morto estando, que motivo haveria para não me publicar?

O editor, reposta na calça a fralda da camisa, arqueou as sobrancelhas:

— De fato, você cumpriu o primeiro requisito. Agora, pegue os formulários com a secretária, traga os originais encadernados em seis vias com firma reconhecida em cartório, pague uma taxa simbólica e aguarde o telefonema... Ah, e parabéns.


[Raymundo Netto]

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