domingo, 12 de outubro de 2008

APROVEITE O SILÊNCIO (FRAGMENTO)


(…)

Os vermes vulgares do seu sistema digestivo se petrificaram e cada movimento peristáltico que arrasta pra baixo as porcarias verdes de que se alimenta e de que se compõe é acompanhado por uma sensação aguda de choque nas suas paredes internas sob a escuridão úmida sucedidas pela queimação ácida das feridas desprotegidas. Jurou pra si mesmo que nunca mais odiaria ninguém — mas nunca que ia ser bom; são coisas diferentes — e, enquanto não odiasse, seria superior a tudo, mas quem passa a vida toda sem experimentar essa volúpia dolorosa e sua solidão impotente?

— Mas-ti-gue is-so leeeen-ta-men-te… seu filho da pu-ta… porque eu… eu estou me divertindo muito e preciso de mais, mais, mais.

Podia encontrar seus desafetos — se chama Mautus Fidélis Cohen Filho e, além de uma identidade civil, tem um endereço e uma existência física — em todos os lugares, saindo quando ele estava entrando, passando quando ele estivesse parado numa esquina ou ponto de ônibus sob suspeita ou parados em esquinas ou pontos de ônibus suspeitos quando ele estivesse passando — como desconhecidos interessantes cuja continuidade do destino se ignora, seu pensamento permanecia, fissurado, neles — e todas as palavras que as professoras do primário não gostam de ouvir saindo da boca dos seus alunos aparecem de uma vez misturadas com jargões ultrapassados de filosofia barata surgem na cabeça ao mesmo tempo prontas a fazer uma confusão dos diabos na boca dormente de lidocaína e todos os músculos se tencionam ao mesmo tempo, uns contra os outros e prestes a romper os tendões, à espera confusamente pronta da agressão sempre adiada. Acontece que a sua carapaça começou a endurecer sobre os pontos errados, atravancando as juntas e tornando os ossos quebradiços: não tinha mais a boa sensação em potência de que podia derrubar um cara que agredisse ele, e, justamente nessa hora, enfraquecia sua política de, fisicamente, nunca começar as brigas, apenas se defender, o contrário do que fazia com os argumentos, o falastrão. Agora era ele que, inseguro, precisava provocar as brigas, se quisesse brigar, com palavras mal escolhidas, porque todo mundo julgava ele um filho da puta, ainda, mas ninguém mais se habilitava a querer quebrar aquela cara acabada. Se segurava, pra evitar o pior, a humilhação gratificante da derrota física, mas ficava remoendo o fato de que, caso brigasse, ia acabar no chão, derrotado. Mas nada se comparava à falência moral de sua retórica; sua fala modorrenta e cada vez mais salivada só funcionava e mal com jovens viciados muito ingênuos ou muito pobres. Mas sabe como são os adolescentes e os adultos novos, mesmo os fodidos: não aturam de ninguém mais do que o necessário, e olhe lá, e quanto mais se consegue segurar um deles, mais ele faz cara de que está vendendo o seu tempo e deixou o taxímetro rodando na bandeira 2. Mesmo os fodidos, que ainda fingem alguma consideração, mas muito forçada. Diante de alguém que não se impressione mais com Nietzsche ou coisa parecida, era como se apontasse nas caras um revólver enferrujado do tempo do Getúlio Vargas e que todo mundo soubesse que estava sem balas, e o Mautus acabava provando doses alopáticas do próprio veneno: o último ka, prestativo e ausente, lhe recomendou a lobotomia — o professor Egas Moniz não ganhou o Nobel à toa, meu filho — e o Mautus, porra, reagiu como um adolescente sem vida social querendo comprar uma Playboy sem que ninguém saiba ou como se fosse se drogar pela primeira vez e achasse uma coisa de outro mundo que alguém conseguisse uma dose ilegal de qualquer coisa forte mais perigosa que açúcar, e foi muito ruim, embora fosse o que ele queria — sentir que alguma coisa que ele não tinha podia deixar ele empolgado porque ia ter que se mover pra conseguir essa coisa e isso ia desenferrujar e azeitar suas articulações quebradiças —, porque, em compensação, estava tão longe e difícil que podia não ser alcançado por suas mãos secas duras frias cobertas de coral morto esbranquiçado e ele se sentiu mais velho, humilhado, com ainda menos coisas ao seu alcance e sob o seu controle arbitrário, o que tornava ainda mais pesado ter que enfrentar, todos os dias, a concorrência desleal dos traficantes de drogas tradicionais, que ficaram mais baratas, mais potentes e não tinham os efeitos colaterais sinistros — gente que perdia a sombra e o reflexo, amnésias totais nos piores lugares e momentos (imagine de repente o cara não saber mais que é ser humano e quando volta a desconfiar disso percebe como o conceito é questionável e pira de vez), coabitação de espíritos rivais num mesmo corpo “pequeno demais pra nós dois, parceiro”, abandono de corpos indesejáveis por espíritos derrotistas e desertores, troca de personalidade com as pessoas e os animais que o usuário mais detestava, super-excitações glandulares e vazamentos constrangedores — que os refugos do Mautus causavam nos seus clientes (se conformavam lendo o Livro de Jó e achavam mesmo que eram Jó e que Mautus, como o Deus do Livro de Jó, era um tremendo sacana que pensava que estava com tudo), e o Mautus tinha que se concentrar nesses seus zumbis antigos que não podiam abandonar ele, porque cada vez menos gente nova de fora caía na dele, e ele bajulava seus filhinhos cobertos de lodo e musgo e dizia que dizia que dizia que dizia alguma coisa e pedia, na cara de pau, pra ninguém entrar nos depressivos programas de reabilitação e nas deprimentes clínicas de desintoxicação nem no hospital de Messejana ou no Mira y Lopes, e mesmo quem foi sacaneado pelo Mautus se cansava logo de ver ele se humilhando diante das novas gerações e. A verdade mesmo era que esse Mautus, esse que agora come as migalhas do chão recolhidas com mãos ávidas, era o mesmo de sempre visto sob uma lupa: um coro doente sem força nem vestígio de beleza. Se você olhar as bocas que riem dele, não vai ver mais dente nenhum, e foi por isso que todo mundo se recolheu. Tinha mais graça não.

Uma criatura sentimental numa noite vazia. Eu digo: “revólveres e escapamentos entupidos de máquinas velhas disparam projéteis, fumaça pesada, adrenalina noturna, acelerações cardíacas quase fatais, interrompem poluções, fantasmas macios de pan sexualidades sem limite e a permissividade descontrolada de corpos mal despertos arrastando sonhos e pesadelos disfarçados em passos que conduzem à ruína das famílias”. Mautus preferia ter um machinho arrogante que descontasse nele as agressões que sofria na rua, roubasse seu dinheiro e socasse sua carne flácida como um monte de roupa suja. Alguém a quem esperar, alguém que justificasse sua projeção espiritual tímida na noite que não era mais dele; superfícies duras, cheias de reentrâncias e saliências, cobertas de secreções humanas e vestígios indiscretos de atos safados — uma multidão anônima gritou que esteve aqui, mas ninguém deixou o nome —, músicas ruins e carrancas arrogantes de todos os grupos possíveis de otários sob os olhos práticos e bem calibrados dos malandros de plantão: novas siglas arrojadas foram postas na rua em veículos blindados e profissionais blindados, novos departamentos e burocracias por enquanto eficientes e digitalizadas recebiam o aplauso da classe média amedrontada e a vaia da classe média pretensiosa — conchas de caracol eleáticas cada vez mais pesadas e mais densas e mais imóveis — e o apoio da imprensa farfalhante, mas os caras, os malandros, continuavam onde eram necessários e ainda se perguntavam muito pragmaticamente pra que é que otário quer dinheiro, se. Num pequeno quanto alugado, com cartazes improvisados nas paredes, arrancados de revistas velhas, acalentando sonhos demagógicos e emplastificados de grandeza do seu galinho de briga ativo-passivo auto-limpante, o Mautus estaria pensando nisso, ouvindo os ruídos da música ruim que tocaria em algum lugar cheio de gente agonizante e louca que, se alguém perguntar o que aconteceu, só vai poder sorrir, exalando ácido e fazendo com os olhos metálicos de álcool aquela iluminação fraca que só faz perceber que tudo está muito escuro, porque não vai saber mesmo nem que porra foi aquela nem que cara doido era aquele; o Mautus, o mesmo Mautus que eu conheço e que, não, nunca me enganou, ia estar se esfregando nas paredes feito uma histérica do Lorca, caindo na cama com tesão convulsivo como minhoca no sal e lambendo o seu machinho nas feridas quando visse ele de volta, pra sentir através do outro o gosto pesado e azedo do sobejo de todas as coisas, mas o Mautus, do mesmo jeito que quis ser superior à angústia (teve um tempo que o filho da puta dizia Angust) do ódio, quis ser superior aos lances cômicos do amor — Você disse que ia me amar, você disse, você disse — e agora nenhuma femeazinha plena de humores líquidos e nenhum carinha vago e duro e seco e divertido na sua sensibilidade doentia ia se aproximar dele com a intenção de dar mais do que o necessário e com o preço bem ajustado, apesar de. Ele arrastava por aí um corpo sem impulsos, sem magnetismo positivo nem negativo; podia se sentar pra sempre e ver, na televisão, como os leões do tempo em que havia leões cercavam as zebras do tempo em que havia zebras e comiam elas no tempo em que havia carne ou com os elefantes do tempo em que havia elefantes cobriam suas fêmeas do tempo em que havia fêmeas com seus pênis enormes do tipo no tempo em que havia pênis enormes, mas… porra, o cara não se contentava com nada.

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[airton uchoa neto]

Um comentário:

Advogado disse...

corrosivo! impulsivo! enérgico!

Bom conteúdo, embora com layout de difícil leitura =D


www.liberdadesagrada.blogspot.com